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Covid-19 e o Regime Jurídico Emergencial: olhar à luz dos programas contratuais complexos

Por Marcos Alberto Rocha

Desde o início do avanço da Covid-19 no Brasil percebe-se forte preocupação com o prosseguimento dos contratos e o cumprimento das obrigações, o que também se revela pela tramitação do Projeto de Lei nº 1.179, de 2020, aprovado no Senado Federal no último dia 3 de abril, sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia.

Em relação aos contratos, dedicou-se o art. 6º do PL para limitar a incidência do art. 393 do Código Civil, que disciplina os efeitos de força maior nos contratos a partir do marco indicado para a pandemia no Brasil, adotado pelo PL como 20 de março de 2020.

O projeto de lei apontou para um tratamento em abstrato dos casos, a partir da tomada da pandemia como um evento de força maior com efeitos gerais indistintos. Por trás desta solução geral parece estar a tese de que a pandemia é um acontecimento único, sem precedentes e incomensurável, incapaz de previsão sob qualquer ângulo, e que colhe todas as relações contratuais, distinguindo-se apenas quanto ao grau de intensidade.

De plano, é possível apontar, em contraposição, que, pelo acesso a diversos conteúdos produzidos por outros ramos do saber, tem-se presente que pandemia de Covid-19 não é um acontecimento insular, inimaginável e cujos resultados nas diversas ordens da vida social não se poderiam, ainda que por simulação, dimensionar em grandeza macro, ainda que isto não diminua em nada sua gravidade, em primeiro plano para a saúde das comunidades.

Mostra-se, portanto, inadmissível a tese de singularidade e abrangência imponderável do evento – a rigor fruto maior da ausência de olhar multidisciplinar do direito do que da própria natureza das coisas – a justificar um elastecimento normativo dos mecanismos de incidência da norma prevista no art. 393 do Código Civil.

De outro lado, a busca de respostas por atacado, a partir da aplicação das ferramentas normativas – emergenciais ou consolidadas no sistema codificado – ligadas à força maior, não parece, à primeira vista, uma solução metodologicamente adequada.

Com efeito, o sistema normativo brasileiro converge para compreensão de que, para configuração do caso fortuito, de modo geral, requer-se um acontecimento inevitável ou irresistível, imprevisível e extraordinário, e só podem ser observados tomando cada relação jurídica em si, ou seja, a partir dos efeitos do fato concreto na relação. É de se concluir, neste ponto, que algo imprevisível, irresistível e extraordinário não pode ser tomado genérica e abstratamente para produção de efeitos, nem tampouco se poderia cogitar de uma reconstrução sistemática frente a um evento apocalíptico porque os saberes científicos de outros matizes nos informam que de tal circunstância a Covid-19 não se trata.

Deixando de transbordar a análise para as ferramentas já existentes para os casos em que se mostra inadequada a atuação normativa dos efeitos de força maior, como a teoria da quebra da base objetiva do negócio, para citar um exemplo, o conteúdo próprio do PL em relação às hipóteses em que efetivamente se enfrentem casos de força maior também merece observação crítica.

Parece ser exorbitante decretar, pelo texto do art. 6º do PL, que as consequências de um caso de força maior na execução dos contratos “não terão efeitos jurídicos retroativos” em qualquer caso.

Com efeito, é presente a percepção de que a concretização fenomenológica da vontade discursiva que descreve as relações contratuais, ao menos as mais complexas, não se localiza em um ponto isolado no tempo. Pensemos nos contratos de empreitada global nos quais se observa um programa contratual que se forme aos pedaços, com o cumprimento de certas obrigações propriamente contratuais sobrepostas a comportamentos típicos da fase pré-contratual. Concretamente se pode citar o estabelecimento prévio de marcos críticos necessários na fase de negocial; trata-se de uma obrigação tipicamente contratual e que se transportará para o momento posterior à conclusão definitiva do contrato, mas é necessária desde o início das tratativas para a fixação dos preços.

A ocorrência da pandemia parece, sim, ser capaz de alterar conteúdos pretéritos de tais relações, reorganizando as posições contratuais e os comportamentos, lastreando-se tal rearranjo, maximamente, nos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato.

Assim, é possível concluir que a aplicação prática do conteúdo do art. 6º do PL nº 1.179, se vier a ser mantido em sua redação original na hipótese de promulgação da lei, merecerá interpretação sistemática, que leve em conta a principiologia contratual já assentada em nosso sistema, com especial observância à cláusula geral da boa-fé objetiva, da preservação dos contratos e da função social, importando, com isso, temperamentos hermenêuticos capazes de salvaguardar, ao mesmo tempo, a liberdade das partes e a função social e econômica das relações jurídicas privadas.

Marcos Alberto Rocha é advogado e especialista na área consultiva e contenciosa em Direito Civil, empresarial e arbitragem.

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