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Conflitos de consumo e negociação extrajudicial em tempos de pandemia

Por Fernanda Tartuce[1]

Em cenários pautados pela massificação (como o inerente às relações de consumo) conflitos não faltam; há inúmeros impasses ligados tanto à prestação de serviços quanto à omissão na entrega de produtos.

Em tempos de pandemia, há um incremento ainda mais sensível nas crises; se em tempos normais muitas dificuldades são vivenciadas, o que dizer quando a estrutura estabelecida não funciona e tudo se complica diante de restrições logísticas?

O consumidor vem se revelando cada vez mais atento e empenhado em exercer seus direitos de forma eficiente. De maneira geral, pode-se dizer que as pessoas, em suas relações, agem e reagem prontamente negando-se a adotar posição passiva: tudo querem saber e exigem tratamento digno no atendimento de seus interesses.[2]

Há tempos lojas e empresas têm se esmerado em atender adequadamente seus clientes no intuito de coibir contratempos na relação de consumo, evitar desgastes e, sobretudo, superar a concorrência.[3]

Quando, porém, uma crise aguda como a que vivenciamos por força da pandemia se instala, falta clareza quanto às opções existentes. Vivemos a era da informação, mas muitos dados estão disponíveis em espaços diferentes… além disso, a crise pode acabar obscurecendo a visão e complicar a percepção.

Assim, diante de um potencial impasse, cabe proceder a uma identificação importante: há mesmo um conflito? Há recusa clara e/ou controvérsias quanto a um elemento central da prestação ou da entrega?

Talvez haja proposta de novação – por exemplo, em relação ao tempo da prestação; ela faz sentido?

Havendo proposta de troca em relação ao tempo, pode ser viável cogitá-la com proveito. Nesse caso, é importante identificar:

  1. São claros os termos da proposta? O fornecedor está impondo limites estritos?
  2. Há um canal de comunicação eficiente para sanar dúvidas?
  3. Quais são as opções? Há atos normativos sobre o tema? Podem existir, por exemplo, notas técnicas de órgãos governamentais, medida provisória…

Em relação à tentativa de contato, saber aguardar com paciência (até por alguns dias) é relevante: em tempos de volume maciço de reclamações, a comunicação pode ser difícil.

O contato telefônico não funciona? E o acesso ao SAC (Serviço de Atendimento ao Consumidor) apresenta alternativas como chats ou envio de mensagens?

Quem sabe é melhor buscar contato por redes sociais?

Ou formular reclamação em sites especializados? Há plataformas que se disponibilizam a expor a insatisfação e pedir a resposta sobre ela, favorecendo a negociação? Como exemplo,  o Procon-SP permite o envio de reclamações por via postal e por meio eletrônico.

Constatada a resistência em atender ao direito do consumidor, há mesmo um conflito; para bem se preparar para lidar com a controvérsia, são iniciativas importantes:

  1. Preparar a documentação completa sobre o caso, juntando, por exemplo:
    • Termos da contratação;
    • Recusa à prestação;
    • Listagem de datas e/ou demonstração das tentativas de contato para resolver (com números de protocolo dados pela empresa, se existentes);
    • Matérias na imprensa/mensagens de outros consumidores na mesma situação.
  2. Ampliar o nível de informações sobre o que o fornecedor tem afirmado publicamente em sites, redes sociais, respostas a mensagens (suas ou de outros consumidores);
  3. Preparar um relato consistente com detalhes do caso – incluindo tentativas frustradas de contato;
  4. Analisar opções:

4.1. Adicional tentativa de negociação individual? Por exemplo, buscando plataformas distintas (como o consumidor.gov);

4.2. Aderir a uma negociação coletiva? Exemplo: no início da crise da pandemia de Covid-19, o Procon afirmou que negociaria coletivamente a situação ligada às companhias aéreas.

  1. Após decidir por um ou ambos os caminhos, aguardar a resposta oficial: qual é a opção oferecida? Ela é clara, atende aos interesses? Responder positivamente ou não no prazo indicado (se houver) é também relevante.

Diante de respostas insatisfatórias, o trânsito negocial direto finalizou, mas ainda pode ser viável trilhar outro caminho consensual. Há opções de participar em mediações ou conciliações?

Caso a resposta seja negativa, a via contenciosa pode ser considerada. Judicializar pode gerar melhores resultados? Em caso positivo, agora é o melhor momento para fazê-lo?

A análise deve considerar, dentre vários fatores, um aspecto relevante: o timing (sensibilidade sobre o tempo oportuno para tomar uma iniciativa).

Saber o momento certo de agir é crucial. Como não se trata de fácil identificação, ajudam a desenvolver essa habilidade o conhecimento tácito do profissional envolvido (se houver uma advogada atuando, por exemplo) e o histórico de experiências similares.

Como se nota, é preciso dedicar tempo e empenho à negociação. Oxalá possamos identificar e trilhar os melhores caminhos; como bem destacou Sêneca, “raros são aqueles que decidem após madura reflexão; os outros andam ao sabor das ondas e, longe de se conduzirem, deixam-se levar pelos primeiros”.

[1] Doutora e mestre em Direito Processual pela USP. Professora no programa de Doutorado e Mestrado da Faculdade Autônoma de Direito (Fadisp). Coordenadora e professora em cursos de especialização na Escola Paulista de Direito (EPD). Presidente da Comissão de Mediação Contratual do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Vice-presidente da Comissão de Mediação do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Presidente da Comissão de Processo Civil do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Diretora do Centro de Estudos Avançados de Processo (CEAPRO). Membro da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP). Advogada, mediadora e autora de publicações jurídicas.

[2] TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 5. ed. São Paulo: Método, 2019, p. 383.

[3] SIX, Jean-François. Dinâmica da mediação. Trad. de Giselle Groeninga, Águida Arruda Barbosa e Eliana Riberti Nazareth. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 39.

 

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