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Privacidade e ética no mundo digital

Por Camila Guglielmo*

Para começar, eu gostaria que imaginassem alguém entrando na sua casa sem bater na porta… Ou alguém pegando o seu celular, lendo as suas mensagens, mexendo nas suas redes sociais e nas suas fotos. Acredito que olhar o seu celular hoje em dia te incomodaria até mais do que alguém entrar na sua casa, não é? Pois bem…

O que se passa com o tratamento de dados na Web 3.0 — e quando menciono “tratamento”, falo em coleta, uso, armazenagem e compartilhamento de dados pessoais com terceiros — é que entidades públicas e privadas nos conhecem hoje de forma muito mais detalhada do que aquela como queremos nos apresentar para elas. Os nossos dados pessoais são compilados para traçar o nosso perfil e nos monitorar de forma quase que invisível, e não necessariamente de acordo com os nossos próprios interesses.

Fazendo um paralelo com a vida real, entram na nossa casa sem tocar a campainha, abrem a geladeira e observam o que a gente come, entram no nosso banheiro e dão uma olhada nos cosméticos e remédios que usamos, entram no nosso quarto e abrem a gaveta do criado-mudo tudo de forma silenciosa. Isso afeta a sua esfera bem íntima, não? Isso atinge a nossa privacidade.

Esse assunto é super-relevante para todos nós, seja na qualidade de cidadãos e titulares de dados pessoais, e como advogados, profissionais do Direito.

Apesar de trabalhar há anos com tecnologia, advogando para empresas privadas, o que me fez realmente despertar para a questão ética do uso dos dados pessoais foi uma experiência recente envolvendo o tratamento de dados pessoais no âmbito público.

A verdade é que esse tema da privacidade só passa a ser relevante na nossa vida quando realmente nos sentimos afetados de forma negativa nesse aspecto. Quando temos os nossos dados do cartão de crédito hackeados ou quando alguém tem acesso às nossas conversas ou fotos no celular.

E o Direito traz proteções para os cidadãos nesse sentido. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) estabelece que ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, domicílio ou correspondência; a Constituição Federal (1988) garante a inviolabilidade do direito à liberdade, à vida privada, e ao sigilo da correspondência, de dados e das comunicações telefônicas. Recentemente, o Marco Civil da Internet (2014) e a nova Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que entra em vigor em 2020, trazem importantes princípios, direitos e garantias aos titulares de dados pessoais.

Mas a questão da privacidade na era digital vai muito além do Direito, toca na esfera da ética. E ética é um tema subjetivo, não evidente. Digamos que são valores e princípios que norteiam um grupo de pessoas de determinado local. É muito importante falarmos e refletirmos sobre isso ao falar em privacidade.

É normal conceber que alguém entre no nosso mundo sem pedir a devida licença e fique lá olhando o que estamos fazendo, pelo simples fato de estarmos conectados a algum device? Os termos de uso/serviços e políticas de privacidade dos apps, que nada mais são do que contratos entre as plataformas e seus usuários, não são claros e objetivos, e não permitem escolhas por parte dos usuários. Falta transparência. E agir com transparência é agir de forma ética.

Ter a nossa privacidade protegida é preservar a nossa autonomia, a nossa liberdade de escolha consciente. E, no cenário atual, há muitas práticas questionáveis, do ponto de vista legal e ético, por parte de empresas e governos, e em nível mundial.

Há indícios de que somos vigiados pela TV, laptop e celular. Transcrições de nossas mensagens de áudios são realizadas sem o nosso consentimento expresso e para fins que não nos interessam. E nem conseguimos confirmar quais são as práticas adotadas, porque, via de regra, os ToU e políticas das plataformas não falam abertamente sobre os pontos mais delicados.

Não acreditava realmente que isso poderia acontecer até o dia em que assistia a um festival de música em um canal de TV pago e, ao entrar numa rede social para me comunicar com uma amiga, apareceu na minha timeline um link da banda que estava tocando naquele exato momento. Gostaria que fosse coincidência…

Apps de locomoção sabem aonde vamos e a que horas e, compilando esses dados, conseguem traçar a nossa agenda, com locais e horários. As redes sociais conhecem nossos dados pessoais, o nosso rosto (a partir das fotos), nossos gostos (a partir dos likes), amigos e lugares que frequentamos, e até os sites que navegamos. Bancos e instituições de pagamento sabem quanto e onde gastamos. Imagina se resolvem cruzar todos esses dados? É quase um “DNA” da população mundial! É bem poderoso.

No setor público, gostaria de mencionar alguns casos importantes. A China está numa bolha, numa intranet. Não tem acesso a Google, Facebook e outras ferramentas tecnológicas como nós. Os chineses usam um único aplicativo chamado WeChat para várias funcionalidades, e esse aplicativo (e seus dados) é monitorado pelo governo chinês.[1]

O caso emblemático do Snowden, ex-administrador de sistemas da CIA e ex-contratado da NSA, evidenciou práticas de vigilância do governo norte-americano por meio da infiltração de malwares para captar informações privilegiadas de vários países, incluindo Brasil e Japão. Estratégia contra o terrorismo ou pelo imperialismo?

No Brasil, dados de registro civil dos cidadãos brasileiros (incluindo nascimento, casamento, filiação e óbito) são compilados em uma base centralizada administrada por uma associação privada, sem consentimento dos titulares, padrões legais ou tecnológicos de segurança ou controle desses dados. Com acesso a essa base de dados, é possível consultar com quem um ministro ou político X é casado, se possui filhos e em que cartório do Brasil estão registrados.

Por fim, e talvez um dos assuntos mais sérios da atualidade, é o tema revelado pelo caso Cambridge Analytica (CA), que tomou enormes proporções com o escândalo envolvendo o Facebook, em 2018. A CA se dizia uma behavior change agency, e há fortes indícios da influência da campanha liderada por eles na eleição do Trump e no plebiscito que resultou no Brexit. A CA teria sido contratada para traçar o perfil psicológico dos eleitores norte-americanos a partir dos dados recebidos da rede social, elegia como target pessoas com o perfil “persuasível” e enviava mensagens de veracidade questionável (beirando fake news) para persuadir os usuários de acordo com os interesses de seus contratantes.[2]

O ponto é que a tecnologia vem na frente, inovando. Aí o legislador corre para regular… Exemplo disso é a PEC nº 17/2019, aprovada pelo Senado e que agora tramita na Câmara dos Deputados, buscando a inclusão, na CF, da proteção de dados como direito fundamental.

Mas já que, certamente, ninguém vai deixar de usar celular e apps por conta disso (aliás, nem eu; espero que não tenha dado a impressão de que não sou adepta das inovações tecnológicas), me pergunto quais seriam as medidas para evoluirmos nesse sentido. Proponho:

  1. Consciência: sobre a importância de cuidar dos nossos dados pessoais;
  2. Observar: ao redor como se dá o tratamento dos nossos dados por entes públicos e privados (Estados já estão atentos; a Dinamarca tem um embaixador de tecnologia no Silicon Valley);
  3. Posicionamento:não deixar de usar, mas cobrar transparência e exercer os nossos direitos;
  4. Responsabilidade: nas nossas escolhas, por companhias éticas e responsáveis.

Por fim, que nós aqui, na qualidade de cidadãos titulares de dados e também profissionais do Direito, possamos aplicar a legislação e políticas (globais, nacionais e institucionais) de forma mais transparente, que permitem que os titulares reconheçam as práticas e possam fazer as suas escolhas de forma consciente.

[1] George Orwell na China: digitalização como meio de controle social total, por Markus Pohlmann. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/george-orwell-na-china-digitalizacao-como-meio-de-controle-social-total-07102019.

[2] Documentário The Great Hack/2019, por Jehane Noujaim e Karim Amer. TED O papel do FB no Brexit e ameaça à Democracia, de Carole Jane Cadwalladr, autora britânica, jornalista investigativa e redatora do Observer/The Guardian.

(*) Camila Guglielmo é advogada. Especialista em tecnologia, proteção de dados, propriedade intelectual e contratos.

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