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30 anos do CDC: o que esperar dos próximos capítulos nas relações de consumo?

Por Caroline Visentini Ferreira Gonçalves

Desde a entrada em vigor do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei Federal nº 8.078, de 1990 – CDC), muitos foram os avanços e desafios enfrentados pela sociedade de consumo, principalmente com a inserção do mercado consumidor na economia digital.

Em que pese o CDC ter sido esculpido antes das novidades proporcionadas pela economia digital, seus princípios, garantias e direitos têm conferido parâmetros e regras que vêm sendo observados no ambiente on-line, principalmente por se tratar de norma principiológica e que pressupõe o estudo constante das modificações do mercado de consumo.

Nesse sentido, o direito à informação é aquele que, nas palavras do professor Bruno Miragem[1] – “maior repercussão prática vai alcançar no cotidiano das relações de consumo”. A aplicabilidade do direito à informação ganhou ainda mais destaque com o decreto federal[2] que dispõe sobre a contratação no comércio eletrônico, garantindo a apresentação de informações claras a respeito dos produtos e serviços durante e após a contratação on-line, além de atendimento facilitado ao consumidor.

O mercado consumidor e a aplicação das regras do CDC têm sido desafiados com a chegada das redes sociais, que deu voz ativa aos consumidores,[3] trouxe plataformas de intermediação, além da possibilidade de aquisição de produtos, serviços ou conteúdos digitais por meio de aplicativos, bem como novas formas de contratação na chamada economia de compartilhamento.[4] Com o objetivo de acompanhar esses avanços, foram editados o Marco Civil da Internet[5] e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.[6]

Nesse cenário, dentre os principais desafios vivenciados pelo mercado de consumo em 2019, merecem destaque:

(i)  a implementação do novo Cadastro Positivo;[7]

(ii) o surgimento de Códigos de Defesa do Consumidor estaduais e municipais;[8]

(iii) a criação de Comissão Especial destinada a proferir parecer ao Projeto de Lei nº 3.515/2015, que disciplina o crédito ao consumidor e dispõe sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento[9] e atualização do CDC;

(iv) a edição de nova portaria pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública que regulamenta e atualiza o procedimento de recall;[10]

(v) a maior adesão dos fornecedores à plataforma consumidor.gov.br e outros métodos on-line de solução de disputas;[11]

(vi) os debates sobre desjudicialização e acesso à ordem jurídica justa no mercado de consumo;[12]

(vii) a valoração do tempo do consumidor no endereçamento de demandas de consumo.[13]

Adicionalmente, em um mercado extremamente competitivo, em que os consumidores têm a oportunidade de reagir de forma imediata no ambiente on-line com percepções, recomendações e revisões sobre os produtos e serviços, acompanhamos o surgimento de empresas, muitas delas fundadas como startups, que conquistaram o mercado de consumo, a partir do desenvolvimento e implementação de boas práticas no relacionamento com o consumidor,[14] indo além do cumprimento da lei, visando à manutenção do vínculo consumidor-fornecedor.

Com relação aos desafios a serem enfrentados nos próximos anos de vigência do CDC e suas possíveis atualizações (tendo em vista os desdobramentos do Projeto de Lei do Superendividamento), destacamos: (i) o papel dos fornecedores na internet das coisas, (ii) os novos paradigmas trazidos pela sustentabilidade e economia circular, e (iii) o comércio eletrônico internacional de bens e serviços.

Em termos gerais, a internet das coisas representa uma rede de variados dispositivos (vestíveis ou não) conectados à internet, dentre eles sensores, smartphones, tênis, roupas, eletrodomésticos, além de outros produtos, com o objetivo de facilitar a vida de consumidores e permitir a automação de tarefas.[15] Em 2019, a Consumers International[16] lançou orientações e princípios de confiança a partir do design a serem observados, que compreendem os seguintes requisitos: segurança, privacidade, transparência, suporte aos clientes vulneráveis que necessitam de acessibilidade, assistência ao consumidor e endereçamento de reclamações, e meio ambiente. Tais orientações certamente serão levadas em consideração durante a aplicação e interpretação das normas de defesa do consumidor localmente.

Com relação aos temas de sustentabilidade[17] e economia circular,[18] sabe-se que as questões climáticas e ambientais têm fomentado o surgimento de consumidores que esperam posturas socialmente responsáveis de empresas e que fazem escolhas de consumo considerando os eventuais impactos daquele produto ou serviço no meio ambiente. Em paralelo, normas e políticas que regulam o gerenciamento de resíduos exigem a educação de consumidores[19] nesse tema. Os consumidores, por sua vez, estão atentos e respondem cada vez mais rapidamente adquirindo – ou abandonando – produtos e marcas a partir dos impactos gerados no meio ambiente.

A partir de tais debates, certamente surgirão obrigações em relação ao design do produto, além do papel dos fornecedores no relacionamento pós-venda, levando-se em consideração o binômio reparo-substituição do produto. Conforme nos ensina o professor Hans Micklitz, vivenciamos um momento para repensar o Direito do Consumidor,[20] adotando uma visão holística em que seja possível unir Direito do Consumidor, sustentabilidade e digitalização, e eventualmente criando um “Direito do Consumidor sustentável”. Mais ainda, o professor questiona quais leis e regulações têm sido adotadas para a realização dos 17 ambiciosos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.

Finalmente e não menos importante, a economia de compartilhamento e de plataforma tem viabilizado o comércio eletrônico internacional, garantindo aos consumidores possibilidade de aquisição de uma variedade de produtos ou serviços no âmbito internacional. Nesse sentido, o Projeto de Lei do Superendividamento busca tratar o referido desafio ao incluir como cláusula abusiva aquela que prever a aplicação de lei estrangeira que limite, total ou parcialmente, a proteção assegurada pelo CDC ao consumidor domiciliado no Brasil.

A aplicação e interpretação do CDC foi amplamente debatida e amadurecida nesses últimos 30 anos, com o suporte e liderança dos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, decisões de magistrados e ministros, contribuições de professores, advogados e estudantes de Direito dedicados ao tema. Muitos serão os desafios em relação à aplicação do CDC com a chegada e permanência da economia digital, digitalização e sustentabilidade no cotidiano de um consumidor global que participa ativamente da relação de consumo, com projeção e presença internacional.

É evidente, portanto, a necessidade de adaptação rápida das empresas que atuam no mercado de consumo. As normas, por sua vez, tendem a acompanhar tais mudanças, amparadas em princípios já previstos no CDC e que se adéquam às demandas da sociedade moderna. Mais do que isso, novas obrigações, como aquelas associadas à transparência e sustentabilidade, e decorrentes da internacionalização das relações, impulsionam os fornecedores a irem além da letra da lei, conquistando seu espaço a partir da adoção de melhores – e mais modernas – práticas voltadas a atender esse novo consumidor.

Caroline Visentini Ferreira Gonçalves

Coordenadora da área de Direito do Consumidor de Trench Rossi Watanabe Advogados. Mestre pela Columbia Law School. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista da Magistratura. Especialista pela GVlaw. Associada do Brasilcon e alumna do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio) e da Université du Québec à Montréal (UQAM).

[1] MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 214.

[2] Decreto Federal nº 7.962, de 2013.

[3] CONSUMER FOCUS. In my honest opinion: consumers and the power of online feedback. Disponível em: http://www.consumersinternational.org/media/1218514/in-my-honest-opinion.pdf. Acesso em: 6 mar. 2020.

[4] Assim definida pela professora Claudia Lima Marques como “um sistema negocial de consumo (collaborative consumption), no qual pessoas alugam, usam, trocam, doam, emprestam, compartilham bens, serviços, recursos ou commodities, de propriedade sua, geralmente com a ajuda de aplicativos e tecnologia on-line móvel, com a finalidade de economizar dinheiro, cortar custos, reduzir resíduos, dispêndio de tempo ou a imobilização de patrimônio ou melhorar as práticas sustentáveis e a qualidade de vida em sua região” (MARQUES, Claudia Lima. A nova noção do fornecedor no consumo compartilhado: um estudo sobre as correlações do pluralismo contratual e o acesso ao consumo. Revista de Direito do Consumidor, v. 111/2017, p. 247-268, mai./jun. 2017.

[5] Lei Federal nº 12.965, de 2014, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil.

[6] Lei Federal nº 13.709, de 2018.

[7] Criado pela Lei Federal nº 12.414/2011 e regulamentado pelo Decreto Federal nº 9.936/2019.

[8] O Código Estadual de Defesa do Consumidor de Pernambuco (Lei Estadual nº 16.559, de 2019) ganhou bastante repercussão na mídia durante 2019.

[9] Projeto de Lei Federal nº 3.515/2015 (PLS nº 283/2012).

[10] Portaria nº 618, de 2019.

[11] Nova Senacon vai ampliar uso da plataforma Consumidor.gov.br para evitar judicialização. Ministério da Justiça e Segurança Pública, 7 fev. 2019. Disponível em: http://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-content-1546882100.0. Acesso em: 25 fev. 2019:  “Embora a solução dos conflitos realizada por meio da plataforma leve em média sete dias e ultrapasse os 80% de resolutividade, o secretário acredita que pode triplicar o número de adesões de empresas e consumidores”. VENTURA, Ivan. 10 dias ou quatro anos para resolver um problema de consumo? Consumidor Moderno, 4 fev. 2019. Disponível em: https://www.consumidormoderno.com.br/2019/02/06/10-dias-quatro-anos-consumo/. Acesso em: 25 fev. 2019.

[12] WATANABE, Kazuo. Acesso à Ordem Jurídica Justa. São Paulo: Del Rey, 2019.

[13] BERGSTEIN, Lais. O tempo do consumidor e o menosprezo planejado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

[14] Vale destacar as diversas premiações recebidas pelo Mercado Livre na implementação do Projeto Empodera, divulgação ostensiva do Programa Compra Garantida e selo Empresa Amiga da Justiça conferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. MARQUES, Ricardo Dalmaso. On-line Dispute Resolution (ODR) e o Empoderamento do Usuário. 18 out. 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=E0fZ8Ng2DlA. Acesso em: 18 fev. 2019. A empresa de comércio Mercado Livre (uma das principais incentivadoras dos canais de ODR, internos e externos), por exemplo, já indicou que os atendimentos feitos pelo portal consumidor.gov.br nos anos de 2017 e 2018 levaram a um índice de desjudicialização (ou de não judicialização) de mais de 99%.

[15] O que é Internet das Coisas? Disponível em: https://tecnoblog.net/263907/o-que-e-internet-das-coisas/. Acesso em: 8 mar. 2020.

[16] CONSUMER IOT Trust by Design 2019 – Guidelines and Checklists. Disponível em: https://www.consumersinternational.org/media/239715/trust-by-design-guidelines.pdf. Acesso em: 8 mar. 2020.

[17] O referido teve como grande base debate principalmente promovido tendo em vista a criação dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. Disponível em https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/. Acesso em: 8 mar. 2020.

[18] “O modelo econômico ‘extrair, produzir, desperdiçar’ da atualidade está atingindo seus limites físicos.  A economia circular é uma alternativa atraente que busca redefinir a noção de crescimento, com foco em benefícios para toda a sociedade. Isto envolve dissociar a atividade econômica do consumo de recursos finitos, e eliminar resíduos do sistema por princípio. Apoiada por uma transição para fontes de energia renovável, o modelo circular constrói capital econômico, natural e social. Ele se baseia em três princípios: eliminar resíduos e poluição desde o princípiomanter produtos e materiais em uso; regenerar sistemas naturais”. Disponível em: https://www.ellenmacarthurfoundation.org/pt/economia-circular/conceito. Acesso em: 8 mar. 2020.

[19] Vide Lei Federal nº 12.305, de 2010, que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos e o Decreto Federal nº 7.404, de 2010, que regulamenta a Política Nacional de Resíduos Sólidos.

[20] MICKLITZ, Hans-W. Squaring the Circle? Reconciling Consumer Law and the Circular Economy. EuCML – Journal of European and Market Law, issue 6/2019, p. 229-237.

Fonte: Núcleo de Comunicação AASP

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