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EDITORIAL
Editorial | Segurança jurídica em xeque: quando as regras mudam durante o jogo
A segurança jurídica — pilar do Estado Democrático de Direito, pressuposto da confiança social e condição elementar para o desenvolvimento econômico — atravessa, no Brasil, um momento que demanda reflexão. O cenário atual revela um sistema normativo instável e tensionado por disputas políticas, aliado a uma crescente judicialização que vem temperada por oscilações interpretativas muitas vezes abruptas. O resultado é um indesejável ambiente de incerteza que fragiliza cidadãos, empresas e o próprio desenho constitucional instituído em 1988.
Um dos recentes exemplos desse quadro é o debate em torno do chamado Projeto de Lei da Dosimetria. Sem aqui se discutir o mérito da proposta de alteração legislativa e eventuais excessos nas penas aplicadas, o problema reside no modo como o sistema tem operado, mediante alterações legislativas motivadas por conjunturas específicas. A lei penal não pode ser alterada de afogadilho, de forma casuística, principalmente após recente decisão judicial, da mais alta corte do país, sobre tema que envolve diretamente a proteção do Estado Democrático de Direito.
A insegurança se agrava quando se observa o papel do Supremo Tribunal Federal nesse ambiente de instabilidade. O STF, enquanto guardião da Constituição, exerce função contramajoritária essencial. Contudo, quando suas decisões passam a oscilar de forma sensível em curtos intervalos de tempo — especialmente por meio de decisões monocráticas — a previsibilidade institucional é seriamente comprometida. O também recente caso envolvendo a alteração de liminar relacionada ao impeachment de ministros do próprio Supremo bem ilustra esse dilema: independentemente da importância do tema e do seu debate, o simples fato de haver idas e vindas repentinas, em tema de alta relevância institucional, projeta a imagem de um sistema em permanente estado de exceção interpretativa.
Esse fenômeno não é isolado. Ele se insere em um contexto mais amplo de erosão da confiança nas regras do jogo democrático, no qual normas constitucionais, leis infraconstitucionais e precedentes judiciais parecem cada vez mais contingentes. Quando decisões fundamentais são percebidas como dependentes do julgador, do momento político ou da pressão social, a segurança jurídica deixa de ser um valor estruturante e passa a ser uma promessa retórica.
O impacto disso é profundo. No plano econômico, afugenta investimentos e encarece o custo do capital. No plano social, alimenta o sentimento de seletividade e injustiça. No plano institucional, enfraquece a legitimidade das Cortes e do próprio processo legislativo.
A reconstrução da segurança jurídica no Brasil exige mais do que novas leis ou decisões bem-intencionadas. Exige autocontenção judicial, técnica legislativa responsável e compromisso real com a previsibilidade. Sem isso, movimentos legislativos e judiciais como os recentemente ocorridos continuarão a ser percebidos de forma incompatível com o que se espera de uma sociedade que vive no Estado Democrático de Direito: confiança, estabilidade e igualdade perante a lei.