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O CDC e a harmonização e a pacificação da relação de consumo

Autor: Paulo Wagner Pereira

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Data da produção: 03/7/2023

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A proteção do consumidor é um assunto importante. Mas, inegavelmente há exageros e condutas inadequadas de ambos os lados, ou seja, do consumidor e do fornecedor. E, tenho reparado, algumas vezes a proteção do consumidor é exagerada.

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Anos atrás, me deparei com um caso envolvendo máquina fotográfica digital adquirida por uma consumidora que era bailarina e integrava o grupo de dançarinos que acompanhava um cantor nos seus shows. A máquina fotográfica adquirida apresentou um problema e a consumidora pleiteou danos morais em torno de R$ 100 mil, sob o pretexto de que teria perdido a oportunidade de registrar os momentos de uma turnê.

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Notaram o exagero? Além do valor dos danos morais, não é crível que nos dias atuais a consumidora não tenha pedido a seus pares do corpo de dançarinos o compartilhamento dos registros fotográficos da turnê.

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Além disso, nas razões do pleito reparatório não havia informação de que a consumidora teria tomado medidas para mitigar o seu “prejuízo”, um dever decorrente da boa-fé objetiva.

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Em um outro caso envolvendo a aquisição de um apartamento na planta, o imóvel deveria ser entregue em 36 meses, mas houve atraso de 1 semana. O consumidor resolveu pôr fim ao contrato.

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Perceberam o exagero? Não é razoável que alguém que tenha esperado por 432 semanas (36 meses) o imóvel lhe ser entregue, tenha motivo plausível para pôr fim ao contrato pela demora de 01 semana na entrega. Esse tempo de demora, proporcionalmente ao prazo de entrega (432 semanas) representa 0,2%, ou seja, nada. Não é difícil de ver que o contrato havia sido cumprido substancialmente até o 36º mês – o mês então previsto para a entrega.

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Por falar em imóvel, é difícil entender que um consumidor, tendo adquirido um imóvel para nele residir, obtenha indenização por lucros cessantes quando há atraso na sua entrega, considerando que o bem não se destinaria a produzir frutos ou lucro[1].

O desfecho judicial dessas duas situações? A ação promovida pela consumidora dançarina não prosperou. Já no outro caso a pretensão do consumidor foi acolhida pelo Judiciário.

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Volto a dizer: há exageros de ambos os lados e, quando isso acontece, a parte lesada deve ser reparada na justa medida.

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Porém, não se pode desperceber o mundo real em que vivemos. Um mundo em que há os contratempos da vida em sociedade e em que é humanamente impossível se assegurar que um serviço ou um produto ou qualquer outra atividade não comporte margem de imperfeição. Essa realidade precisa ser sopesada pelo consumidor, pelo fornecedor e pelo Judiciário na relação de consumo e na solução dos conflitos dela originados.

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Assim, é preciso que o fornecedor, o consumidor e o Judiciário estejam atentos e façam valer um dos princípios fundamentais que estrutura o CDC, encontrado no inciso III do seu artigo 4º e que mostra o seu objetivo, a saber: a harmonização dos interesses dos participantes da relação de consumo e a compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica, sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.

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Para se medir a importância desse princípio pense em como seria o Sistema de Proteção ao Consumidor se lhe retirasse o alvo da harmonização dos interesses dos participantes na relação de consumo. Esse sistema desmoronaria.

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De fato, a leitura do inciso III, do artigo 4º do CDC revela o alvo a ser atingido por esse código.

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Todavia, é especialmente no equilíbrio da relação entre consumidor e fornecedor que vejo frustração em certas circunstâncias.

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Na minha percepção, em algumas situações se vivencia o que apelidei de efeito Capitão América na aplicação do CDC.

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Explicando, o Capitão América é um personagem super-herói de quadrinhos. Um rapaz franzino atinge o pico da perfeição humana após nele se aplicar um soro experimental, transformando-o em um ser humano dotado de força e habilidades incomuns. Um super ser humano[2].

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Pois é assim que vejo a aplicação do CDC na proteção do consumidor em certas ocasiões. A proteção dada ao consumidor o eleva a um patamar acima do fornecedor. O consumidor, pela aplicação dos “soros” de proteção do CDC, se transforma num sujeito que tem seus direitos fortalecidos enormemente e elevados a um patamar superior em relação a outros detentores de direito, vindo a se transformar num super sujeito de direito.

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Eis aí o “Efeito Capitão América” na relação de consumo. E isso deve ser evitado. É preciso buscar o equilíbrio e promover por meio da lei a simetria entre consumidor e fornecedor no plano do Direito.

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Para isso todos precisamos nos deixar ser moldados pelo alvo comentado há pouco, a saber: a aplicação do CDC deve, primordialmente, harmonizar, pacificar e equilibrar a relação de consumo.

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A propósito, não poderia deixar de dizer. Embora em certas ocasiões a pacificação dos conflitos provenientes da relação de consumo não atinja o alvo preconizado no inciso III, do artigo 4º do CDC, em muitas outras o Judiciário se mostrou impecável.

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Finalizando, o que busco, despretensiosamente, é provocar por meio desse arrazoado a reflexão sobre a norma principiológica do inciso III do artigo 4º do já trintenário Código de Defesa do Consumidor, tendo em conta que a falta de percepção do seu alvo pelos atores da relação de consumo e pelo Judiciário, ao invés de contribuir para a pacificação e harmonização da relação jurídica, servirá de estímulo à beligerância, o que não é desejável.

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Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da AASP .

[1] Para o STJ, há presunção de lucros cessantes nesta hipótese (vide, a exemplo, Tema Repetitivo STJ 966)

[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Capit%C3%A3o_Am%C3%A9rica

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Autor: Paulo Wagner Pereira

Minibio: Advogado formado pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo em 1984 e pós-graduado em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas e pós-graduando em Direito Público: Constitucional, Administrativo e Tributária na PUCRS.

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