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Covid-19 – O que é essencial?

Por Antonio Ruiz Filho

Em tempos de pandemia, estimulado pelo ócio do confinamento, passei a refletir sobre o que é mais importante. As reflexões também incluíram a disputa travada pelas mais altas autoridades públicas, entre proteger a vida, evitando mortes mediante severo isolamento, e os funestos reflexos que tudo isso pode gerar para a economia e a subsistência de muitos brasileiros, principalmente tendo em vista a desigualdade social em que estamos imersos.

É preciso sopesar que a quantidade do remédio pode tornar-se venenosa e matar o doente, apesar do propósito de curá-lo.

Ante esta crise é imprescindível saber quais são as medidas a serem priorizadas para não inviabilizar a continuidade da vida agora e num futuro próximo. Para isso, ainda não há uma fórmula pronta, que depende de avaliação diária, com base na ciência, na experiência internacional, na política e no bom senso, repudiando-se arroubos de toda sorte. O momento requer união de esforços.

Não há precedentes na história recente deste novo mundo da informação planetária em tempo real. No momento, procurar respostas para questionamentos essenciais e úteis para a tomada de posições é também apropriado ao conhecimento que se extrai do Direito, além de outras ciências.

É fato que os direitos, circunstancialmente, “competem” entre si, criando certas contradições. Assim, por exemplo, o que viria em primeiro lugar: o direito à informação ou a preservação da imagem, da intimidade e a proteção da honra? Qual é a precedência entre os direitos coletivos, difusos, e os direitos fundamentais do indivíduo, motivo de debate constante na área criminal? Apesar dessa antinomia, é possível ao menos refletir sobre o que tem preferência.

O primeiro compromisso há de ser sempre com a vida e, por consequência, também com a saúde, de que é elemento fundamental. Sem saúde a vida fenece ou se esvai aos poucos, abreviando sua finitude…

Qual seria, então, o segundo maior bem a merecer proteção? Creio, especialmente com a minha concepção de criminalista, que seja a liberdade. De que adianta viver sem liberdade? E, para quem a perde, não seria a esperança de recuperá-la a sua maior razão de viver?

Somos seres gregários, para quem a interação social integra a própria existência. E em tempos de confinamento residencial cabe mencionar que a prisão domiciliar, ao contrário do que é voz corrente, não se trata de benesse assim tão branda – impõe restrições bem difíceis de suportar, tanto mais quanto maior seja o tempo de sua duração –, apesar de ser a forma mais leve de aprisionamento prevista no Direito Penal.

Depois de verificar a essencialidade da vida, e concluir que liberdade é seu maior predicado, chega-se ao que pode ser um terceiro elemento do patrimônio existencial, o bem-estar, aqui concebido como gênero do qual emanam espécies que acabam por conformar a vida em sociedade. Neste ponto, aparecem bens de naturezas diversas, mas que compõem um mesmo conjunto de necessidades e valores. Aqui coexistem a economia como força motriz para prover a subsistência da nação, a imprescindível preservação das condições ambientais, a moradia, o emprego, a educação, o lazer, a cultura, a segurança, a igualdade de oportunidades, a justiça, ou seja, uma vida com autodeterminação e que contemple o mínimo para uma existência digna.

Estes pensamentos, convém reconhecer, não são originais. Como resultado da Revolução Francesa, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, no seu artigo 1º já propugnava: “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum”. E a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em Assembleia Geral pela ONU do pós-guerra (1948), enfatiza: “Art. 3º – Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”.

A nossa Constituição da República assegura, já no seu preâmbulo, “o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”. O art. 3º, inciso I, eleva a objetivos fundamentais “constituir uma sociedade livre, justa e solidária”.

Visto que a vida é o fundamento de tudo, e que sua manutenção depende da saúde, não se pode submetê-la a riscos, quando for possível preservá-la, ainda que mediante sacrifícios e privações. Às favas com tudo o mais, se for para proteger a vida – é esse o fundamento, por exemplo, da legítima defesa como excludente de ilicitude. A liberdade do preso, de quem está sob quarentena obrigatória ou aceita a condição de isolamento, com a restituição plena ou parcial do direito constitucional de ir e vir, haverá de ser reconquistada em cada caso, aos poucos, conforme as condições impostas forem atingidas. O bem-estar social, e de cada cidadão em particular, é uma luta constante, objetivo permanente do Estado e uma responsabilidade da sociedade em geral, independentemente dos tempos sombrios em que vivemos, a impor grandes dificuldades que teremos de enfrentar.

Antonio Ruiz Filho

Advogado criminalista, foi presidente da AASP e diretor da OAB-SP e do IASP.

Fonte: Núcleo de Comunicação AASP

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