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ESPAçO ABERTO
O princípio da dignidade da pessoa humana versus a mitigação da regra impenhorabilidade salarial
Autora: Anelise Vaz
Data de produção: 09/11/2023
Da tendência de flexibilização da regra da impenhorabilidade de salários do artigo 833, IV do CPC pelo STJ e a aplicação na Justiça do Trabalho
Em decisão recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a Corte Especial, ao julgar os embargos de divergência 1.874.222/DF[1], foi enfrentada a questão da impenhorabilidade de salários para pagamento de dívida de qualquer natureza, isto é, não apenas de obrigação de alimentar, independentemente do montante recebido pelo devedor, desde que preservado valor que assegure subsistência digna para ele e para sua família.
A vedação sobre a penhora de salários e outras fontes de renda, como a aposentadoria, tem natureza histórica, uma vez que marcados pela característica de bem essencial para o sustento do devedor e sua família. Portanto, a impenhorabilidade salarial visava a proteção do devedor contra penhoras e execução forçada de dívidas de natureza não alimentar.
A impenhorabilidade dos salários encontra-se determinada no Direito Civil pátrio no artigo 833, inciso IV, do CPC que determina a impenhorabilidade absoluta dos vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadorias etc., mas que possui duas exceções elencadas no parágrafo 2º do referido artigo 833, permitindo a penhora se ela tiver por objetivo: o pagamento de dívida de alimentos, independente da sua origem e pagamentos de outras dívidas não alimentares desde que os salários percebidos não ultrapassem o montante de 50 salários-mínimos mensais (R$ 66 mil reais, em valores atuais)[2].
Portanto, trata-se de direito líquido e certo do devedor. Se assim não fosse, sua própria subsistência ficaria comprometida, o que se pode interpretar como desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana e deve se ter cuidado ao utilizar a interpretação comumente veiculada no âmbito da Justiça do Trabalho, que considera a expressão – “prestação alimentícia, independentemente de sua origem” – exceção à regra da impenhorabilidade do salário para satisfazer crédito trabalhista.
Isso porque a exceção está taxativamente direcionada à prestação alimentícia de que trata o artigo 1694 do Código Civil, tanto que a parte final do referido § 2º do artigo 833 remete expressamente à forma de cumprimento estabelecida nos artigos 528, § 8º, e no art. 529, § 3º e estes, estão localizados topograficamente no capítulo IV que trata do cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de prestar alimentos.
Posto isto, a penhora de salários por se tratar de subsistência, é ilegal, e não estão sujeitos a exceção prevista no parágrafo 2º da referida norma que se refere a prestação alimentícia, que não se confunde com o crédito trabalhista, ainda que de natureza alimentar.
As exceções contidas no §2º do artigo 833 do CPC que regulamenta a impenhorabilidade acima descrita, não se aplicariam, portanto, a hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia. No entanto, o termo “prestação alimentícia”, foi utilizado pelo legislador, na reforma de 2015, como sinônimo de “pensão alimentícia”, referindo-se aos alimentos familiares, aos alimentos indenizatórios e aos voluntários, ou seja, prestação alimentícia é aquela revestida de grave urgência, porquanto o alimentando depende exclusivamente da pessoa obrigada a lhe prestar alimentos, não tendo outros meios para se socorrer.
Tanto é que o legislador no já citado artigo 528 do CPC, §3º, utilizou o mesmo termo “prestação alimentícia”, para autorizar a prisão civil do devedor. Diz o artigo 528: “No cumprimento de sentença que condene ao pagamento de prestação alimentícia ou de decisão interlocutória que fixe alimentos, o juiz, a requerimento do exequente, mandará intimar o executado pessoalmente para, em 3 (três) dias, pagar o debito, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetua-lo. §3º: Se o executado não pagar ou se a justificativa apresentada não for aceita, o juiz, além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do § 1º, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses.”[3]
Vale lembrar que a execução deve ser realizada em benefício do credor, mas de modo a causar o menor sacrifício possível ao devedor, diante do denominado princípio da utilidade da execução que visa suprir o débito cobrado e não causar danos desnecessários ao devedor.
Assim, ainda que se respeitem entendimentos em contrário, referido instituto da prestação alimentícia, portanto, não se confunde com as verbas trabalhistas de natureza alimentar, ou seja, aquelas que decorrem da relação de trabalho, da remuneração.
Torna-se cristalina essa interpretação, quando se pensa que, igualar os institutos, pensão alimentícia de dependente e verba alimentar trabalhista significa, primeiro igualar coisas distintas e em seguida declarar a preponderância de uma em relação a outra coisa igual. Significa tirar o alimento de um para entregá-lo a outro, em situações genéricas que extrapolam e muito a satisfação das necessidades básicas do dependente que a lei assegurou no art. 1.694, § 2º, do CC. Diz referido artigo: “Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situação de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia”.[4]
Melhor esclarecendo, se fosse admitida na Justiça do Trabalho a exceção prevista no artigo 833, §2º, do CPC, como decorrência natural, seria também admitida a prisão do devedor, nos moldes do artigo 528, §3º, do mesmo dispositivo legal, o que não é admitido, mas mesmo assim, está em franca aplicação atualmente a mitigação da regra da impenhorabilidade salarial cedendo ante o crédito trabalhista que tem natureza alimentar, mas repita-se, não trata-se originariamente de prestação alimentícia, ou seja, que decorre da obrigação de prestar alimentos.
Então, em que pese essa tendência de mitigação do artigo 833, IV, parágrafo 2º. do CPC no sentido de ampliar a eficácia das normas fundamentais do processo civil, sobretudo para possibilitar o cumprimento das obrigações, com a penhora do próprio salário para a satisfação de crédito trabalhista, os pedidos devem ser analisados caso a caso, observando-se a Teoria do Mínimo Existencial, sem prejuízo direto à subsistência do devedor ou de sua família, devendo o magistrado levar em consideração as peculiaridades do caso e se pautar nos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, podendo até mesmo, conforme seu entendimento pessoal, indeferir a pedido de penhora salarial nos termos da lei.
A penhorabilidade dos salários pode causar transtornos irreparáveis ao assalariado e à manutenção do seu lar, como prejuízos irremediáveis e dificuldades financeiras por suprimir meios necessários a uma vida digna e saudável e violando por conseguinte, a Constituição Federal e o dispositivo que trata da DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, especificamente o artigo 1º, inciso III, o que a partir da mitigação da regra da impenhorabilidade, cumpre ser demonstrado pelo devedor-executado de forma detalhada nos autos dos processos toda vez que sofrer ameaça deste tipo de constrição.
Mas de qualquer maneira, falta muito ainda para que haja uma definição quanto ao limite do salário passível de penhora, vez que atualmente os diferentes critérios judicialmente adotados não conferem ampla segurança jurídica posto que a análise do tema ainda é casuística, ou seja, caso a caso, e depende da prova pelo devedor de suas despesas e necessidades.
Cumprirá então ainda, um outro passo importante para a uniformização das decisões judiciais de entendimento do tema, a definição do que seja o “mínimo existencial”, ou seja, o qual seria o montante necessário para garantir a dignidade do devedor e de sua família de forma a dar efetividade a proteção constitucional da dignidade da pessoa humana que inclui muito além do “mínimo”, ou seja, não apenas sua subsistência básica, mas direito a uma vida com saúde, lazer, segurança, educação além de direito a poupança de valores que permitam uma segurança e esperança no futuro.
[1] Embargos de Divergência em RESP, Relator(a): Min. João Otávio de Noronha – Corte Especial, acórdão publicado em 24/05/2023. Votos vencidos: Ministros Raul Araújo e Maria Isabel Gallotti.
[2] O salário-mínimo para o ano de 2023 foi estipulado em R$ 1.320,00 pela Medida Provisória 1172/2023.
[3] Lei no. 13.105 de 16 de março de 2015, Código de Processo Civil, artigo 528.
[4] Lei no. 10.406 de 10 de janeiro de 2002, Código Civil, artigo 1694.
Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da AASP .
Anelise Vaz
Advogada Especialista em Direito Empresarial – Graduada em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia em 1999 e Pós-Graduada pela FGV/RJ em Direito Empresarial.