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Lei de Alienação Parental completa uma década

“Art. 2° – Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.”

Punida com multas, alteração de visitas e até mesmo a inversão da guarda, o conceito de alienação parental foi criado pelo psiquiatra norte-americano Richard Gardner na década de 1980 e vem se desenvolvendo até os dias de hoje. No Brasil a alienação parental foi incorporada pela Lei nº 12.318/2010, que nos últimos anos tem enfrentado questionamentos e controvérsias. Para falar sobre o tema, conversamos com a psicóloga forense Glícia Brazil.

  1. A Lei de Alienação Parental trouxe mais avanços ou retrocessos?

A lei é um avanço histórico, porque demarcou o lugar que a criança e o adolescente ocupam no espaço jurídico: são sujeitos, e isso significa que a criança e o adolescente têm todos os direitos inerentes à pessoa humana, como liberdade e convívio familiar, por exemplo, devendo o Estado-juiz assegurar a efetividade desses direitos. A lei trouxe medidas que o juiz pode aplicar para inibir quem usa a criança para atingir os familiares, como objeto de vingança pessoal.

  1. Na prática é difícil identificar o ato? Que tipo de condutas podem caracterizar a alienação parental?

Na prática não é tão difícil identificar o ato de alienação parental, podendo, inclusive, ser declarado como tal, de ofício, pelo magistrado (art. 4, caput, da Lei nº 12.318) qualquer ato que vise dificultar a formação ou manutenção do vínculo de afeto da criança com seus familiares pode ser considerado ato de alienação, ato de rompimento, ato de exclusão. Alienar é excluir, afastar. A lei foi útil quando trouxe, no art. 2, caput, as condutas que são consideradas ato de alienação parental, como, por exemplo: no dia em que o filho vai ao encontro do não guardião, deixar de dar a este informações sobre o filho; desqualificar os familiares do(a) genitor(a); mudar de domicílio sem justificativa, para dificultar o convívio. Essas e outras condutas são atos de alienação parental, enfatizando-se que o rol é exemplificativo, o que significa que, no caso concreto, o juiz vai analisar os fatos.

  1. Há controvérsias quanto a sua aplicação?

A aplicação da lei é controversa, em especial em dois artigos:
– art. 2, inciso VI: a lei diz que é ato de alienação parental fazer falsa notícia de crime e não comprovar o fato alegado. Uma parcela de estudiosos entende que isso provoca a permanência de abusos contra a criança e o adolescente, daí a denominarem “lei pedófila”, uma vez que cria um obstáculo para que a notícia de abusos chegue à rede de atendimento.
– art. 6, inciso V: a lei prevê a alteração e a inversão da guarda, por isso se diz que a “lei é misógina”, porque pune a mulher.
Pela minha experiência, acredito haver nesses argumentos uma interpretação equivocada, pelas razões abaixo:
– um pai ou mãe genuinamente preocupados em proteger o filho não deixam de noticiar fato grave na rede de proteção, pois a proteção é prioridade, mais do que ser taxado de ser “alienador” ou “alienadora”;

– não é verdade que automaticamente se declara ato de alienação parental quando não se prova o alegado: o juiz vai avaliar se no caso concreto a pessoa que noticiou o abuso tinha condições de saber ser falso;
– a inversão da guarda sã é medida excepcional e será aplicada depois de tentadas outras medidas menos gravosas. Inclusive, o caput do art. 6, que trata das medidas de proteção, assim orienta. Ou seja, para se chegar à inversão, houve um longo caminho processual, com contraditório e ampla defesa;

– não é verdade que a lei visa punir a mulher. A lei visa coibir qualquer pessoa que aliene da vida de uma criança ou adolescente as pessoas que são a família da criança; é a história daquela criança. O que acontece é que, na prática, as mães são, em maioria, as guardiãs unilaterais, porque historicamente foi esse o papel da mulher numa estrutura patriarcal como a do nosso país, tendendo essa realidade a ser mudada com os avanços da guarda compartilhada e divisão dos papéis de cuidado entre pai e mãe.

  1. O acompanhamento psicológico tem forte importância na solução desses conflitos? O Estado consegue ser efetivo?

O acompanhamento psicológico dos pais, e do filho junto com os pais, é fundamental, porque os adultos precisam entender o mal que causam ao filho e aprender a separar as questões da conjugalidade e da parentalidade. Idealmente, os adultos fazem tanto terapia individual como familiar, incluindo a criança e o adolescente, porque o núcleo familiar permanece – a separação foi do casal, e não do filho em relação aos pais. Então, o juiz pode compulsoriamente aplicar a terapia aos pais. Para que essa medida seja efetiva e eficaz, é necessário que a rede assistencial esteja capacitada (postos de saúde e ONGs que têm como objeto o tratamento psicológico), sendo fiscalizada pelo Estado-juiz e podendo o acompanhamento do tratamento psicológico realizado fora do tribunal ser acompanhado por equipe de psicólogos do tribunal, a fim de avaliar a evolução ou a involução do vínculo de afeto da criança ou adolescente com o adulto que se pretende fortalecer.

  1. Qual o impacto da pandemia sobre a alienação parental?

A pandemia impactou bastante, gerando quadros de alienação parental ou agravando os existentes, ao trazer dificuldades no trânsito das crianças e adolescentes entre as casas dos pais e familiares. Como forma de amenizar a falta do convívio presencial, o convívio virtual passou a ser a regra. Porém, o convívio presencial traz mais benefícios ao desenvolvimento psicológico da criança, havendo estudos que indicam a necessidade da criança de tocar e ser tocada para se desenvolver biopsicossocialmente, de modo desejável. Há outras dificuldades, como falta de sinal de internet, inacessibilidade de grande parte da população a equipamentos eletrônicos, frustrações geradas em crianças pequenas porque não se concentram por muito tempo etc.

  1. Existem movimentações que pedem a revogação da norma. O que acha?

O debate é sempre importante, mas a lei não é ruim, e na medida em que deu nome a um fenômeno que sempre existiu nos tribunais – o uso do filho como objeto de vingança – permitiu que medidas inibidoras desse gesto pudessem ser adotadas mais regularmente, como forma de auxiliar a família a se reorganizar nos papéis, separando o que é do filho e o que é dos pais.

Acredito que um caminho do meio seria o mais adequado, fazendo ajustes na lei, para aumentar o propósito pedagógico e também dar aos magistrados um passo a passo sobre o que fazer após a declaração do ato, sendo essa uma das dificuldades que percebo, na prática forense: muitos juízes deixam de declarar o ato porque não entendem bem o que é alienação parental, e porque faltam procedimentos que estimulem a declaração, sendo idealmente que a declaração pudesse adotar medidas de punição para quem pratica o ato de AP e de tratamento, na mesma proporção.

Importante lembrar a natureza jurídica do ato de alienação parental: abuso moral e violência psicológica contra criança e adolescente, respectivamente, arts. 3 da Lei nº 12.318/2010 e 4, inciso II, b, da Lei 13.431/2017. Abuso moral é sinônimo de coação moral, e o efeito da coação moral é a invalidade relativa do negócio jurídico. Logo, se comprovado que a criança sofre alienação parental, suas declarações estarão eivadas de vício do consentimento, havendo a dicotomia entre a vontade íntima e a vontade declarada.

Esse raciocínio serve para invalidar decisões baseadas exclusivamente em relatos de crianças e adolescentes, como, por exemplo: “Eu quero ficar com fulano”. Pois coloca-se em dúvida de quem é o querer: se da criança ou de quem pratica o ato de alienação parental em face dela.

Fonte: BRAZIL, Glícia Barbosa de Mattos. Escuta de criança e adolescente e prova da verdade judicial. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha; DIAS, Maria Berenice (coord.). Famílias e Sucessões: polêmicas, tendências e inovações. Belo Horizonte: IBDFAM, 2018. p. 503-518.

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