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Implicações penais da pandemia Covid-19

Por Flora Sartorelli Venâncio de Souza

Se há dez dias alguém me dissesse que hoje eu estaria de quarentena, trancada em casa, escrevendo um artigo sobre implicações penais em tempos de pandemia, nunca acreditaria. De uma hora para a outra, trabalhadores tiveram que se adaptar ao home office, comércios foram obrigados a fechar e a #fiqueemcasa virou trending topic. E, com os novíssimos tempos de isolamento social em prol da saúde pública, novos debates na seara criminal surgiram, junto com a preocupação de contágio irresponsável.

A pergunta da vez é: e se, em meio à “crise pandêmica”, uma pessoa contaminada pela Covid-19 desrespeitar as recomendações sanitárias governamentais, expondo outros à doença? E se tal pessoa apenas apresentar sintomas, sem ter confirmação de que de fato possui a doença? Tais situações caracterizariam crime?

Já se vê a tomada de uma série de medidas sancionadoras pelos Estados nesse tipo de situação. Na Itália, por exemplo, dezenas de milhares de pessoas que desrespeitaram as regras da quarentena foram multadas.[1] Especificamente sobre medidas criminais, há caso recente do Chile, em que o Ministério do Interior formulou uma queixa contra uma pessoa com sintomas de coronavírus que, mesmo assim, viajou de Santiago a Temuco, sem esperar o resultado de seu exame.[2] Dias depois, o Ministério Público de Temuco abriu, de ofício, investigação criminal, com a acusação de ter colocado a saúde pública em risco em tempos de pandemia.[3]

No Brasil, no último dia 17, foi promulgada a Portaria Interministerial nº 5, que estabelece, em seu arts. 4º e 5º, possíveis medidas criminais a serem adotadas pelo governo em caso de desobediência a medidas trazidas pela Lei Federal nº 13.979/2020, a qual dispõe sobre medidas emergenciais diante da epidemia de coronavírus. O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, chegou a afirmar que quem desrespeitasse a quarentena após diagnóstico de confirmação “vai ter que responder perante a Justiça, podendo até cumprir uma pena de prisão.[4]

Nesse contexto, alguns tipos penais pátrios, que antes pareciam ter rara aplicação prática, chegaram com tudo ao debate. São eles: i) crime de perigo de contágio de moléstia grave (art. 131); ii) crime de perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132); iii) crime de epidemia (art. 267); iv) crime de infração de medida sanitária preventiva (art. 268); v) crime de desobediência (art. 330); todos do Código Penal.

O primeiro crime trata de praticar ato capaz de transmitir doença grave, devendo o agente agir com a finalidade específica da reprodução do contágio, com penas de um a quatro anos de reclusão. Já o segundo, menos grave (pena de detenção de três meses a um ano), trata de expor a vida ou saúde de outrem a perigo direto e iminente. Nesse último caso, não se exige especial fim de agir. Em ambos os casos, o autor deverá estar ciente de que (provavelmente) porta doença, seja por meio da confirmação do resultado de exame, ou da apresentação de sintomas típicos.

Vale ressaltar que, para a caracterização dos dois crimes apontados acima, a conduta deverá ter potencial lesivo ao bem jurídico tutelado, seja a saúde pública, seja a saúde e a vida de pessoas individualmente consideradas. Não basta, portanto, alguém portar uma doença ou vírus; ela deverá de fato colocar a saúde de outrem em risco.

O terceiro é, de longe, o mais grave. Ele prevê pena de reclusão de dez a quinze anos a quem der causa a epidemia “mediante a propagação de germes patogênicos”. Se resultar morte, a pena dobra, podendo chegar a 30 anos.[5] A redação é bastante similar à do art. 438 do Código Penal da Itália, objeto de discussão em diversos meios de comunicação italianos, como uma possível resposta a quem viola as regras restritas de isolamento daquele país.[6] Contudo, no meu entender, esse tipo só se aplicaria se a conduta do autor der causa a uma epidemia até então inexistente. Não seria possível aplicá-lo à mera violação de medidas sanitárias. Afinal, não se pode dar causa a algo que já se iniciou.

Os dois últimos, apenados apenas com pena de detenção,[7] foram aqueles citados, pela Portaria Interministerial nº 5, como possíveis medidas criminais a serem tomadas no Brasil. Ambos tratam basicamente do ato de desobediência a determinações governamentais. O art. 268, entretanto, trata do desrespeito de medida destinada a impedir propagação de doença contagiosa, o que parece ser o tipo penal mais adequado à situação aqui debatida.[8]

De acordo com a Portaria, no caso da medida de isolamento, para a caracterização do delito, o descumprimento deverá ser de ordem médica, após devida comunicação das consequências penais. No caso da medida de quarentena,[9] o descumprimento será de ordem emanada por meio de ato administrativo formal, editado por secretários municipal ou estadual de Saúde, o ministro da Saúde ou por prefeitos, governadores ou presidente da República. Nesses dois casos, pouco importa se a pessoa já teve diagnóstico de confirmação da doença ou não. O enfoque é no descumprimento de determinação médica ou governamental que vise restringir os efeitos da pandemia.

Flora Sartorelli Venâncio de Souza é advogada e especialista na área de Direito Penal Empresarial e Compliance.

Fonte: Núcleo de Comunicação AASP

[1]  Vide a seguinte reportagem: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/03/19/milhares-de-europeus-sao-multados-e-indiciados-por-violar-quarentena.htm. Acesso em: 20 mar. 2020.

[2] Vide o seguinte artigo: https://www.t13.cl/noticia/nacional/gobierno-presenta-querella-hombre-contagiado-coronavirus-viajo-temuco. Acesso em: 20 mar. 2020.

[3] Art. 318 do Código Penal chileno.

[4] Vide a seguinte matéria: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/quem-infringir-a-quarentena-vai-responder-perante-a-justica-avisa-moro/. Acesso em: 19 mar. 2020.

[5] Art. 438 c.c. art. 452 do Código Penal italiano.

[6] A título de exemplo, a seguinte reportagem: https://www.lastampa.it/cronaca/2020/03/17/news/violare-la-pandemia-e-procurata-epidemia-si-rischia-il-carcere-cambia-l-autocertificazione-1.38603579. Acesso em: 20 mar. 2020.

[7] A pena do art. 268 é de detenção de um mês a um ano e a do art. 330, de 15 dias a seis meses. Ou seja, apesar das declarações de Sérgio Moro, muito dificilmente ensejariam pena restritiva de liberdade.

[8] Vale lembrar que, de acordo com jurisprudência já pacificada, o crime de desobediência, em respeito ao princípio da ultima ratio, não se configura pelo mero descumprimento da ordem legal, sendo necessário também que não haja sanção administrativa ou civil para aquele ato. Em relação às questões aqui debatidas, como há também previsão de sanções administrativas para o descumprimento da Lei Federal nº 13.979/2020, dificilmente o delito de desobediência seria aplicado. Além disso, o crime de desobediência se caracteriza quando existe uma ordem de funcionário público especificamente dirigida a uma pessoa, sob pena de qualquer infração a ordem legal configurar crime de desobediência.

[9] No último dia 21, o governador João Doria decretou a adoção da medida de quarentena em todo o Estado de São Paulo, a partir de 24 de março, para serviços considerados não essenciais.

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