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Impactos da covid-19 sobre os contratos empresariais

Por Ana Frazão[1]

Parece haver poucas dúvidas de que a pandemia da Covid-19 é um fato imprevisível, seja em relação à sua existência, seja em relação às suas consequências.

É no contexto dessas preocupações que o presente artigo buscará mapear os reais impactos da pandemia sobre os contratos, mostrando as alternativas que o sistema jurídico brasileiro detém para lidar com o problema, assim como as modificações pontuais que pretendem ser implementadas pelo Projeto de Lei nº 1.179/2020.[2]

Inicia-se o exame do tema com a lembrança de que a principal função econômica do contrato – especialmente dos contratos de troca ou intercâmbio – é garantir segurança e previsibilidade às partes. É por essa razão que as possibilidades de revisão e resolução são vistas como excepcionais.

Mesmo nos contratos híbridos ou relacionais, embora a lógica de segurança e previsibilidade seja substituída pela lógica da flexibilidade e da adaptabilidade implementada por meio de contratos intencionalmente incompletos, espera-se que os mecanismos de governança previstos pelas partes possam assegurar a adaptação do contrato a novos fatos, o que pode ocorrer por meio de diversas alternativas, que vão desde o dever de renegociar até mesmo à participação de um terceiro, como um expert, um mediador ou um árbitro.

Como o dever de cooperação nos contratos híbridos ou relacionais faz parte do próprio objeto contratual, todos os esforços devem ser feitos para a manutenção do vínculo, ainda que com as devidas modificações. Consequentemente, embora não se observe incondicionalmente o princípio do pacta sunt servanda, há que se conter o oportunismo excessivo e se assegurar a continuidade do pacto, ainda que por meio da sua revisão ou adaptação.

Dessa maneira, a resolução ou o descumprimento também devem ser vistos como soluções excepcionais em relação aos contratos híbridos, motivo pelo qual, diante de uma pandemia que possa alterar substancialmente as expectativas das partes em relação ao contrato, não há dúvidas de que a melhor alternativa seria a revisão consensual do contrato. Mesmo nos contratos de troca ou intercâmbio, a solução consensual também seria a melhor opção.

Entretanto, não sendo possível o consenso, o ordenamento jurídico disponibiliza alguns mecanismos diretos distintos para enfrentar a pandemia, tais como os previstos nos arts. 317, 393 e 478 do Código Civil.

Os arts. 317 e 478 tratam de eventos imprevisíveis que ocasionam o desbalanceamento dos contratos. A diferença é que a desproporção, no caso do primeiro, é vista sob a ótica do devedor, enquanto que, sob a ótica do segundo, envolve um juízo relacional entre credor e devedor, na medida em que o evento deve trazer onerosidade excessiva para uma das partes em detrimento da extrema vantagem da outra. É por essa razão, inclusive, que se entende que o art. 478 não acolheu propriamente a teoria da imprevisão, já que é necessário igualmente o evidente desbalanceamento do contrato.

Vale ainda lembrar o art. 393 do Código Civil, que trata do caso fortuito ou da força maior, marcados pela irresistibilidade, bem como os arts. 113, § 1, inciso V, e 421-A, inciso II, que abrem a possibilidade para discussões relacionadas à base do negócio jurídico e à preservação da alocação originária de risco definida pelas partes.

O ordenamento jurídico brasileiro ainda conta com inúmeras soluções que decorrem de cláusulas gerais, como a boa-fé objetiva e a vedação ao abuso de direito, que permitem a contenção de comportamentos excessivamente oportunistas, bem como dão margem à incorporação de discussões relevantes, como a exceção da ruína, a frustração do fim do contrato, dentre outras.

Logo, é fato que o ordenamento jurídico brasileiro conta com uma gama de soluções para resolver as distintas consequências da pandemia sobre os contratos, ainda que possa haver dúvidas e mesmo divergências em relação a várias das alternativas mencionadas, que nem sempre estão unidas por um fio condutor comum.

Entretanto, se há um ponto sobre o qual existe considerável convergência, senão unanimidade, é o fato de que todas essas soluções precisam considerar as peculiaridades do caso concreto. Isso afasta preliminarmente a ideia de que a pandemia possa ser um fato que desequilibra todos os contratos na mesma extensão e, exatamente por isso, justificaria de forma apriorística o descumprimento, a resolução ou a revisão.

Daí os cuidados que se deve ter com soluções amplas e generalizantes. Mesmo a breve experiência que já estamos tendo com a pandemia mostra que os seus impactos realmente divergem conforme o tipo e as circunstâncias dos contratos, assim como variáveis externas – como os casos em relação aos quais se cogita da aplicação da teoria do fato do príncipe. Em vários casos, a impossibilidade de cumprimento da prestação é apenas momentânea, o que igualmente não justificaria soluções extremas, como a resolução.

Todas essas razões mostram a cautela que deve orientar o tratamento do tema, até porque o pior cenário seria aquele em que a pandemia levasse a descumprimento maciço e indiscriminado de contratos, o que contribuiria para o próprio colapso da economia.

É no cenário acima descrito que se deve analisar a necessidade, a oportunidade e o acerto do Projeto de Lei nº 1.179/2020, ao tentar disciplinar os efeitos da pandemia sobre os contratos, buscando evitar a judicialização excessiva.

Inicialmente, é importante advertir que a intervenção do legislador, em situações de crise, deve ser pontual, provisória e ocorrer apenas quando o sistema jurídico efetivamente não dispõe das devidas soluções para o problema. Sob essa perspectiva, um ponto positivo do projeto é apresentar soluções pontuais e temporárias.

Nesse sentido, prevê o art. 6º que “As consequências decorrentes da pandemia do coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos”.

Ora, ao mencionar a inexistência de efeitos jurídicos retroativos, o artigo já traz dificuldade interpretativa inicial, que é a de saber de que retroatividade se trata – da máxima, média ou da mínima –, matéria que é extremamente controversa.

Todavia, a interpretação que pareceria mais coerente – a de que, em contratos de execução sucessiva ou continuada, as prestações vencidas antes da pandemia estariam obviamente resguardadas contra todos os efeitos da crise – é contrariada pela justificativa que consta do relatório votado pelo Senado. Segundo o relatório, a finalidade do art. 6º foi criar marco temporal – o dia 20 de março de 2020 – a fim de determinar que os contratos celebrados antes dele não estariam sujeitos aos efeitos da pandemia e deveriam ser cumpridos tal como foram acordados.

Tal solução, que não se extrai do texto da norma, leva a grandes dificuldades, pois, além do marco temporal ter sido fixado de modo arbitrário, a prevalecer a mens legislatoris, estar-se-á diante de solução injustificável e injusta, pois o ideal seria que os contratos anteriores à pandemia pudessem se utilizar das soluções usuais do sistema – tais como o art. 317, 393 e 478 do Código Civil – sempre que presentes os seus pressupostos. Com efeito, é precisamente em relação a eles que a pandemia pode ser vista como um fato imprevisível. Já no tocante aos contratos posteriores à pandemia, pelo menos o evento é certo, ainda que as consequências sejam imprevisíveis.

Por outro lado, ainda que se despreze a mens legislatoris, continuarão as divergências a respeito do que pode ou não ser considerado retroatividade, especialmente em situações específicas, como contratos de longa duração cujas etapas estão intrinsecamente conectadas umas às outras, de forma que o desbalanceamento em uma delas pode implicar o desbalanceamento de todo o programa contratual.

Já no art. 7º, dispõe o projeto que “Não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário”.

Embora a intenção do projeto tenha sido trazer para a lei entendimento jurisprudencial já consolidado em outras crises que já vivemos, considerando os impactos da atual crise, os quais, até o momento, não podem ser nem mesmo vislumbrados, indaga-se em que medida é legítimo equipará-la antecipadamente a crises anteriores.

Para muitos, a atual pandemia é a crise econômica mais grave desde a Grande Depressão dos anos 1930, cujos efeitos ainda são impossíveis de serem vislumbrados. Logo, não faz muito sentido tentar antecipar um futuro que continua a ser absolutamente incerto e em relação ao qual a experiência do passado pode não ser útil ou pertinente.

Assim, conclui-se que os arts. 6º e 7º, apesar da legítima intenção de buscarem segurança jurídica e evitarem o oportunismo excessivo, acabam propondo critérios e diferenciações inadequados e que ainda engessam o tratamento do tema. Nesse cenário, melhor seria que pudessem ser utilizadas as soluções já previstas pelo ordenamento jurídico, diante das especificidades de cada caso concreto.

Ao se arvorar a resolver antecipadamente os problemas contratuais da Covid-19, o projeto ainda estimula a cultura de soluções centralizadas pelo Estado, quando seria melhor criar incentivos para as soluções consensuais, em relação às quais vários consectários de importantes cláusulas gerais, como o dever de renegociar, já oferecem importante suporte.

[1] Advogada e professora de Direito Civil, Comercial e Econômico da Universidade de Brasília (UnB).

[2] Vale ressaltar que o artigo foi finalizado no dia 15 de abril de 2020, quando o projeto de lei, já tendo sido aprovado pelo Senado, aguardava a aprovação pela Câmara dos Deputados. Dessa maneira, o artigo baseou-se na redação aprovada pelo Senado, com base no parecer da senadora Simone Tebet.

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