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A Suposta Falta de Regulamentação do Trabalho dos Motoristas e Entregadores de Aplicativos
Autora: Patrícia Souza Anastácio
Minibio: Advogada. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela USP; especialização em Direito Processual Civil pela ESA; especializando em MBA – Advocacia Corporativa e Governança EDA. Membra Efetiva da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB – Gestão 2022/2024. Advogada Membra da Black Sister in Law; Advogada Membra da ANAN – Associação Nacional da Advocacia Negra. Conselheira Suplente da AASP.
Texto: 16/3/2023
Um dos temas mais comentados na seara trabalhista é acerca da regulamentação dos motoristas e entregadores de aplicativos, sob a alegação de que não há lei que regulamenta o tema.
Pois bem, antes de adentrarmos ao mérito da questão se faz necessário pontuar algumas diretrizes que são fundamentais para esclarecer o cerne da discussão.
O Brasil é um Estado Democrático de Direito e, como tal, possui como fundamentos da República: a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho e da livre iniciativa, sendo a ordem econômica e financeira do nosso país fundada na sua valorização do trabalho, tendo por fim assegurar a todos, a existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 1º, caput, III e IV c/c 170, caput, CF/88).
Ademais, os artigos 3º, I, III e IV c/c 170, caput e VII, CF/88 dispõem acerca dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, o qual traz: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos.
O direito do trabalho surgiu exatamente para equilibrar a relação entre o capital x trabalho, tanto é assim que o princípio fundamental é a proteção do trabalhador, e a Constituição Federal Brasileira traz o valor social do trabalho como um dos fundamentos, além de elencar o artigo 7º como direitos e garantias fundamentais.
Assim, a relação empregatícia é a regra, e a relação de trabalho a exceção, com isso o artigo 3º da CLT elenca a prestação de serviços, a pessoalidade, a onerosidade, a habitualidade e a subordinação como condições para o reconhecimento desse contrato de trabalho.
Porém, as relações de emprego atuais divergem daquelas regidas pela CLT de 1943, a subordinação à época era aquela em que toda a atividade produtiva era realizada dentro da fábrica, sob a ótica do empregador presente diariamente.
Nos dias atuais, a tecnologia não apenas mudou a nossa vida cotidiana, mas também as relações empregatícias ganharam novos contornos, a subordinação tem outros aspectos, mas a essência da relação empregatícia permanece e não pode ser negada ou ignorada pelo Estado.
Com essa nova dinâmica e novos modelos de trabalho surgem as empresas de aplicativo (de mobilidade urbana e entregas), sob o pano de fundo serem empresas de tecnologia, quando na verdade a sua atividade lucrativa decorre do trabalho humano e não da suposta tecnologia oferecida.
É incontroverso que o aplicativo das empresas (Uber, Ifood, 99) dependem do trabalho humano e não o inverso, ou seja, a simples disponibilidade desses softwares sem a mão de obra do trabalhador (como o principal autor da cadeia produtiva) impediria a aferição de lucros na atividade empresarial.
Assim, a chamada “uberização” das relações de trabalho, que pretensamente criaria novas formas de trabalho, na verdade possui exatamente os mesmos elementos que compõem uma relação de emprego (prestação de serviços, pessoalidade, onerosidade, habitualidade e subordinação).
A prestação de serviços consiste na própria existência do trabalho efetivo (dirigir o veículo, motocicleta ou bicicleta), a pessoalidade (o trabalhador não pode ser substituído por outra pessoa), a onerosidade (recebimento de salário, o trabalho não é voluntário, o trabalhador recebe a contraprestação pela atividade realizada), habitualidade (a prestação de serviços se dá por cada corrida ou entrega realizada), e, por fim, a subordinação (que será tratado abaixo).
Somente um parágrafo, para o reconhecimento da relação empregatícia (artigo 3º da CLT) se faz necessário o reconhecimento dos 5 itens acima mencionados.
No Brasil, alguns magistrados decidem pelo não reconhecimento da relação empregatícia sob o argumento de que a escolha dos dias e horários é sinônimo de autonomia e com isso não há subordinação, já que os demais trabalhadores (regidos pela CLT) não possuem essa “liberdade de escolher o dia e horário”, e assim alegam que a autonomia afasta a subordinação, logo não há vínculo empregatício.
Bom, teço críticas do fundamento alegado, pois pela nova ótica da relação de emprego, a escolha do dia e do horário faz parte desse contrato de trabalho, já que os trabalhadores ganham por corrida e não por dia trabalhado.
Ademais, essa suposta escolha também faz parte do contrato de trabalho digital, pois para as empresas de aplicativo não seria viável ter todos os motoristas trabalhando no mesmo dia e mesmo horário, pois isso não atenderia sua finalidade lucrativa (a disponibilidade para entregas e transporte por 24 horas), tanto é assim que nos feriados, domingos e horários de pico há a chamada “tarifa dinâmica”, como também há incentivos (tais como bônus e prêmios) para a prestação de serviços em dias e horários determinados pelas empresas.
Não se pode olhar para essas relações de emprego com a visão clássica da subordinação da CLT 1943, o direito do trabalho assim como o mundo evoluiu, as relações evoluíram, e o Estado não pode sob o pretexto de não ter lei (embora essa autora entenda que há lei) virar as costas para o trabalhador e negar-lhe direitos fundamentais garantidos no texto constitucional, inclusive a proteção junto a Previdência Social, uma vez que é negado a sua condição de empregado, este não terá direito a contagem do tempo de contribuição para fins previdenciário, não é assegurado em acidente de trabalho ou qualquer outra mazela.
Nesse sentido, o artigo 4º da LINDB e 8º da CLT são claros ao mencionarem que nos casos de lacuna o juiz deve aplicar o direito de forma subsidiária, mas na Justiça do Trabalho Brasileira, os juízes negam o direito a classe trabalhadora, sem observar os princípios que regem o Direito do Trabalho, Direito Comparado, normas gerais, virando as costas àquele que tem no Estado o único garantidor da sua dignidade.
Portanto, não se pode falar em falta de regulamentação aos motoristas e entregadores de aplicativos, pois a CLT regula as relações empregatícias, e deve ser aplicada nessas novas formas de relação de emprego.
Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da AASP .
Patrícia Souza Anastácio
Minibio: Advogada. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela USP; especialização em Direito Processual Civil pela ESA; especializando em MBA – Advocacia Corporativa e Governança EDA. Membra Efetiva da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB – Gestão 2022/2024. Advogada Membra da Black Sister in Law; Advogada Membra da ANAN – Associação Nacional da Advocacia Negra. Conselheira Suplente da AASP.