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Extrato Da Conta Corrente, CTPS e Declaração De Pobreza Como Meio De Garantir Um Direito Constitucional

Autor: Alan Duarte Villas Boas

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Data de Produção: 10/12/2026

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Os artigos postados neste canal são apresentados por associadas e associados e refletem visões, análises e opiniões pessoais, não correspondendo, necessariamente, ao posicionamento da AASP.

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I – Introdução

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Como a exceção tornou-se regra? Em que momento os direitos e garantias fundamentais deixaram de ser pressupostos inegociáveis para se tornarem “favores” condicionados à demonstração de carência? No Brasil, o acesso à justiça, especialmente por meio da gratuidade judiciária, tem sido cada vez mais condicionado a obstáculos formais que negam sua essência constitucional.

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A simples declaração de hipossuficiência, prevista como suficiente pela legislação processual, tornou-se objeto de “suspeita sistemática”, exigindo-se do cidadão que comprove, com documentos bancários e vínculos empregatícios, sua miserabilidade econômica.

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Em um país estruturalmente desigual, essa prática não apenas contraria a Constituição Federal, como também reforça a exclusão daqueles que mais necessitam da proteção jurisdicional do Estado.

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II – A Normativa Constitucional e Processual: Regra ou Ficção?

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Constituição Federal de 1988, em seu artigo , inciso LXXIV, estabelece que o “Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita àqueles que comprovarem insuficiência de recursos”.Código de Processo Civil, por sua vez, nos artigos 98 a 102, trata da gratuidade judiciária com base no princípio da boa-fé e na presunção relativa de veracidade da declaração de pobreza (art. 99, § 3º).

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Contudo, a prática forense impõe uma lógica inversa; a parte é presumida financeiramente capaz, até que prove sua indigência com provas detalhadas e, muitas vezes, vexatórias. Tal inversão representa um descompasso entre norma e realidade, violando a função garantista do direito processual.

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III – O Tema Repetitivo 1178/STJ: Tentativa de Correção de Rumo

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O Superior Tribunal de Justiça fixou as diretrizes, Tema Repetitivo 1178, na tentativa de uniformizar a concessão da justiça gratuita e reafirmar os princípios constitucionais e processuais envolvidos. Três teses foram estabelecidas;

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  1. 1. Vedação de critérios objetivos automáticos: é proibido indeferir o pedido de gratuidade com base exclusiva em parâmetros como renda mensal ou salário fixo.

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  1. 2. Dever de fundamentação e contraditório: caso o juiz identifique elementos nos autos que afastem a presunção de hipossuficiência, deve oportunizar ao requerente a apresentação de provas, indicando de forma fundamentada as razões para tanto (art. 99§ 2ºdo CPC).

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  1. 3. Critérios objetivos apenas como complemento: somente após a diligência e o contraditório, é permitido o uso de critérios objetivos em caráter suplementar, nunca como justificativa única para o indeferimento.

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Embora esse posicionamento seja juridicamente promissor, a cultura da desconfiança institucional e do formalismo excludente permanece dominante no cotidiano judiciário.

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IV – Acesso à Justiça: Princípio Constitucional ou Burocracia Disfarçada de Legalidade?

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O direito de ação não é um luxo. É o exercício legítimo de cidadania por meio do modelo processual previsto na Constituição. Acesso à ordem jurídica justa, como bem define Marinoni, significa “assegurar a todos, sem distinções econômicas ou formais, o direito de pleitear a tutela jurisdicional do Estado por meios adequados, céleres e eficazes”.

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A exigência de comprovações excessivas, como contracheques, extratos bancários, histórico de carteira de trabalho e, por vezes, declarações de terceiros, não apenas burocratiza o processo, como inviabiliza o acesso de muitos que sequer possuem recursos para reunir essa documentação. A formalização da miséria como pré-requisito para o exercício de um direito é, no mínimo, um paradoxo institucional.

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Enquanto o cidadão comum precisa atestar sua pobreza por escrito, com “firma reconhecida”, pelo advogado, grandes conglomerados econômicos operam com regimes jurídicos que blindam seu patrimônio e facilitam o acesso ao Judiciário.

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A ironia não escapa; talvez o inventário de um bilionário como Silvio Santos, considerando o ITCMD de 4%, alíquota de São Paulo, financiasse milhares de acessos gratuitos, justamente aqueles que são negados todos os dias a cidadãos sem recursos, barrados por exigências documentais.

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Mas a pergunta que se faz é? Cadê o inventario do Silvio Santos (exemplo hipotético)? Mistério jurídico…

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V – Violência Simbólica e Estrutura Social: Uma Leitura a partir de Bourdieu

 

A reprodução dessa desigualdade no espaço jurídico pode ser lida sob a ótica de Pierre Bourdieu. O autor identifica na “violência simbólica”, a capacidade dos sistemas sociais de imporem estruturas arbitrárias como se fossem naturais e legítimas.

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Assim, o sistema jurídico, ao exigir do hipossuficiente a comprovação formal da miséria, exerce uma forma de coerção simbólica legitimada institucionalmente.

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Segundo Bourdieu, os “habitus”, esquemas de percepção, ação e pensamento socialmente construídos, moldam a forma como os agentes atuam no campo jurídico.

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O Judiciário, enquanto espaço de poder simbólico, contribui para a manutenção das estruturas de dominação ao exigir do cidadão comum uma performance burocrática que naturaliza sua exclusão.

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Ao mesmo tempo em que os “agentes” são produtos da estrutura social, também são produtores dela. Dessa forma, o juiz que nega gratuidade com base em um extrato de R$ 1.200,00 (mil e duzentos reais) mensais, não apenas aplica a lei: ele reproduz uma lógica de exclusão disfarçada de legalidade.

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VI – Conclusão

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O acesso à justiça gratuita não pode ser tratado como favor, tampouco como exceção. Trata-se de uma garantia constitucional que visa permitir a concretização do Estado Democrático de Direito.

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Exigir que o cidadão, comprove, em detalhes, sua condição de miserabilidade para que possa exercer o direito de ação é uma distorção inaceitável. Mais grave ainda é a seletividade com que essa exigência é aplicada; enquanto os mais vulneráveis são submetidos a rigorosos filtros documentais, os economicamente privilegiados encontram menos resistência, e, muitas vezes, mais respeito, no mesmo sistema.

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Constituição deve ser regra, não enfeite. E o Judiciário, se quiser realmente ser instrumento de justiça, precisa aprender a confiar menos nos papéis e mais nas pessoas.

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A igualdade processual não se alcança com exigências cartoriais, mas com a sensibilidade constitucional humana.

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Alan Duarte Villas Boas

Minibio: Advogado com atuação em Direito Civil e de Família. Pós-graduado em Direito das Sucessões e Direito Processual Civil. Autor de TCC sobre Nietzsche e o Direito, orientado por Edgar Solano (Univap), com banca de Luiz Carlos Andrade de Aquino.

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