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ESPAçO ABERTO
Críticas à aplicação do princípio da acessoriedade pela jurisprudência do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo
Autora: Natália Cordeiro Barbosa Dijigow
Data de produção: 17/6/2025
A Constituição Federal brasileira prevê, em seu artigo 5o, incisos LIV e LV, os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
O devido processo legal pode ser identificado sob o prisma de duas diferentes concepções: formal e material (ou substancial). A primeira significa que é fonte de direitos e de garantias que dizem respeito à validade do processo (contraditório, juiz natural, publicidade, motivação, entre outros); a segunda, por sua vez, implica na ideia de que é fonte dos deveres de proporcionalidade e de razoabilidade, impondo a juízes e tribunais (administrativos, controladores e judiciais), que decidam com observância destes dois princípios.
O princípio do contraditório, corolário do devido processo legal, também pode ser compreendido sob a ótica de duas diferentes dimensões: formal e material (ou substancial). A primeira, diz respeito à concepção clássica, que o compreendia pelo binômio “ciência” e “reação”: nesse sentido, o contraditório estaria cumprido se as partes tivessem ciência da decisão prolatada, bem como se lhes fosse oportunizada a possibilidade de reação a esta decisão. A segunda, contudo, mais contemporânea e que vem sendo aplicada pelos tribunais, entende o princípio pelo trinômio “ciência”, “reação” e “poder de influência”, tendo este último elemento o objetivo de tornar a decisão administrativa, controladora ou judicial democrática e coparticipativa. Nesse ponto, o contraditório teria intrínseca ligação com o modelo cooperativo de processo, instituído pelo novo Código de Processo Civil, através do qual o julgador possui deveres de esclarecimento, prevenção, adequação e consulta, sempre oportunizando às partes a possibilidade concreta de apresentarem razões efetivamente capazes de influenciar na decisão a ser proferida.
O princípio da ampla defesa, por sua vez, também corolário do devido processo legal, é imanente ao contraditório, e, segundo o professor Didier Júnior, pode ser identificado com a dimensão substancial deste último, composto, nesse sentido, pelo clássico binômio “ciência” e “reação”, adicionado pelo “poder de influência”.
Pois bem!
O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo consolidou sua jurisprudência quanto à aplicação do princípio da acessoriedade, segundo o qual o julgamento pela irregularidade de um certame licitatório e do contrato dele decorrente, culmina, por via de consequência, na irregularidade dos aditamentos que lhe são sucedâneos.
Contudo, decisões alicerçadas apenas e tão somente na técnica da acessoriedade, na prática, violam a concepção substancial do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, uma vez que, além de ferir os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, implicam na máxima de que quaisquer informações, justificativas, razões e esclarecimentos prestados e apresentados pelos Entes Públicos envolvidos, a fim de defender a regularidade de aditamentos contratuais, restariam, ao final, irrelevantes e inócuos, incapazes de influenciar, de fato, no poder de decisão dos Conselheiros.
Nesses casos, apesar de o Tribunal viabilizar o contraditório e a ampla defesa, o faz apenas formalmente, tolhendo, no entanto, qualquer “poder de influência” substancial do Ente fiscalizado sobre a decisão a ser proferida quanto aos aditamentos.
Em face do juízo irregular da matéria inicial, pela aplicação da técnica da acessoriedade pelo Tribunal, ao Ente Público envolvido jamais será possível ter os aditamentos a um contrato julgado irregular, regulares, independentemente de quaisquer defesas que apresente, o que, além de ferir a concepção substancial do contraditório e da ampla defesa, ainda viola a dimensão material do devido processo legal, em razão da inobservância dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
A aplicação da técnica da acessoriedade, no julgamento de aditamentos, tal como exposto, culmina, na prática, na inutilidade substancial do contraditório e da ampla defesa pois, apesar de estes serem oportunizados formalmente ao Ente interessado, jamais resultarão em qualquer alteração material da realidade jurídica outrora decidida no julgamento da matéria inicial.
Em outras palavras, se oportuniza apenas a possibilidade formal de apresentar defesa, a qual, contudo, independentemente de seu conteúdo substancial, pela técnica da acessoriedade, jamais será acolhida.
Um contraditório com verniz de ampla defesa, mas esvaído da possibilidade concreta e real de influenciar o poder de decisão de um julgador, não é contraditório, mas mera formalidade processual.
A aplicação incondicionada da técnica de acessoriedade inviabiliza, de todo modo, qualquer possibilidade de reverter o que já fora decidido na matéria inicial.
Importante lembrar que o certame licitatório, o contrato e os aditivos a ele celebrados, apesar de guardarem, em seu nascedouro, uma mesma causa jurídica inicial, tratam-se, na essência, de instrumentos jurídicos diferentes e independentes entre si, com objetos próprios e finalidades específicas, tanto é assim que o próprio Tribunal de Contas do Estado de São Paulo os acompanha e os fiscaliza em processos próprios diferentes (chamados de “TC”), instaurados em momentos diversos. Não há uma relação imanente e automática de dependência entre eles, a ponto de os vícios de um necessariamente macularem a validade de outro.
Desse modo, a irregularidade de um e/ou de outro não deve ter o condão de contaminar, sempre e incondicionalmente, todos os instrumentos que lhes procedam, notadamente se estes últimos estiverem formal e materialmente em ordem.
A técnica da acessoriedade, utilizada pela Corte de Contas Paulista, não pode ser absoluta, sob pena de ferir os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, os quais são imanentes ao devido processo legal: conforme se depreende do ordenamento jurídico pátrio, sob o aspecto material, os artigos 172 e 1.734, do Código Civil, admitem a convalidação de negócio jurídico anulável por ato confirmatório, ou seja, acessório do principal; sob o aspecto formal, também há previsão expressa de relativização da regra da acessoriedade, consoante o disposto no artigo 2.445, do Código de Processo Civil, cujo princípio, aplicável a todo e qualquer processo, admite que os requisitos formais dos atos jurídicos, por si só, não são um fim em si mesmo, podendo ser relevados quando o ato (acessório) alcançar a sua finalidade.
Desse modo, na esfera controladora, a irregularidade de uma licitação e/ou de um contrato (principal) não pode contaminar a regularidade de todos os termos aditivos que lhe forem sucedâneos, haja vista a independência desses instrumentos, para os quais existem regras específicas a serem respeitadas pela Administração, quando de sua formalização, sob pena de, nesses casos, sempre se incorrer em nova e inafastável irregularidade.
A técnica da acessoriedade, utilizada pelo TCE-SP, decorre do direito civil e, de fato, aos contratos administrativos aplicam-se, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado, nos termos do artigo 54, da revogada Lei nº 8.666/93, e do artigo 89, da Lei nº 14.133/21. Contudo, a aplicação de normas de direito privado aos ajustes celebrados pelo Poder Público, notadamente àqueles disciplinados pela Lei de Licitações, é apenas complementar, a fim de possibilitar o aperfeiçoamento das regras de direito público que os alicerçam, de modo que a aplicação de regras, normas e técnicas jurídicas de direito privado jamais pode ferir a finalidade precípua dos contratos administrativos que é justamente a de atender ao interesse público.
Dentro da legalidade, a celebração de aditamentos pauta-se, primordialmente, no atendimento de interesses públicos indisponíveis envolvidos na contratação, a fim de se garantir eficiência, qualidade e continuidade na prestação de serviços pactuados, essenciais à coletividade, os quais, como regra, não podem sofrer qualquer tipo de hiato ou paralisação, sob pena de graves prejuízos aos administrados.
Dessa forma, se a celebração dos aditamentos observar as regras específicas que lhes pertinem, previstas na legislação, não há que se cogitar de sua irregularidade, apenas e tão somente pela aplicação do princípio da acessoriedade.
Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da AASP .
Natália Cordeiro Barbosa Dijigow
Minibio: Procuradora-Chefe da Procuradoria Consultiva e do Contencioso Administrativo do Município de Mauá/SP, advogada, consultora e escritora. Formada em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e Especialista em Direito Tributário pela Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes LFG -Universidade Anhanguera Uniderp.