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Mês da Mulher – Entrevista com a desembargadora Kenarik Boujikian

“É fundamental lembrar que a participação das mulheres na magistratura paulista é fruto da luta das advogadas que pressionaram para que a barreira de preconceito contra as mulheres fosse rompida” , Kenarik Boujikian

Nascida na Síria, ela integra a magistratura desde 1989, sendo uma das fundadoras da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Conhecida por posições garantistas, enfrentou até mesmo um processo disciplinar em prol de suas convicções.

No mês em que revisitamos as nossas lutas, falamos com a desembargadora Kenarik Boujikian, que relembra os desafios em defesa da Constituição, legislações e jurisprudência dos tribunais superiores, compartilha sua visão sobre a participação das mulheres no Judiciário e levanta questões importantes para a nossa época.

Confira!

Defina a mulher Kenarik Boujikian.

Kenarik Boujikian: Difícil uma autodefinição. Posso dar algumas pistas a partir das minhas vivências, que acabaram por marcar o meu jeito de ser. Mas adianto que há uma citação da Clarice Lispector na qual me vejo muito:

             “E eu não aguento a resignação.

             Ah, como devoro com fome e prazer a revolta”.

Bem, sou neta de sobreviventes do genocídio armênio; tenho três filhos;  nasci numa aldeia da Síria e vim para o Brasil com três anos; fiz magistério em um colégio salesiano (Colégio de Santa Inês); trabalhei em recreação infantil com crianças carentes, numa organização de assistência social (Unibes); em 1984 me formei em Direito na PUC e, durante a faculdade, fui voluntária no sistema prisional, por encaminhamento de um dos meus professores, desembargador José Gaspar Gonzaga Franceschini, que era juiz corregedor dos presídios; tive  mestres incríveis, que foram e são essenciais à minha formação; fui advogada, procuradora do Estado de São Paulo, e depois ingressei na magistratura, no TJSP, em 1989; me aposentei como desembargadora,  em 8 de março de 2019, no Dia da Mulher; fui cofundadora da Associação Juízes para a Democracia, que tive a honra de presidir; sou feminista e, essencialmente, sempre militante de direitos humanos. Acho que o compromisso com os direitos humanos é aquilo pelo qual as pessoas mais me reconhecem, e pela revolta e indignação que tenho com as injustiças sociais e que mover. Em síntese, você me pede uma tarefa muito complicada!

Como enxerga a importância da participação das mulheres no Judiciário? As políticas de igualdade de gênero estão funcionando?

Kenarik Boujikian: A presença das mulheres no Judiciário revela que caminhamos para estar mais próximos do propósito constitucional de ter um Brasil mais igualitário. O projeto ético da nossa Constituição Federal vai se concretizando. Ainda, serve de referência para as mulheres jovens que hoje enxergam que este espaço de poder pode ser ocupado por mulheres.

É fundamental lembrar que a participação das mulheres na magistratura paulista é fruto da luta das mulheres advogadas que pressionaram para que a barreira do preconceito contra as mulheres fosse rompida. Olhando para o passado, louvo todas que lutaram para que as mulheres pudessem ingressar no TJSP, o que só aconteceu em 1981. Até os dias de hoje o número de mulheres é menor que o de homens.

No TJSP há 898 juízas, de um total de 2.519 integrantes, o que representa 35,6% dos magistrados. Na segunda instância, a proporção é menor: são 31 mulheres, de um total de 360 desembargadores. Na Sessão Criminal do TJSP a proporção é menor ainda. Quando eu saí do tribunal, na Sessão Criminal éramos quatro desembargadoras, de um total de 90.

Na verdade, nunca houve política pública para a realização do princípio da igualdade no Judiciário. Foram as mulheres que foram abrindo os caminhos.

Só em 1996 é que tivemos uma política, de âmbito legislativo. Fico feliz por ter participado para que ela se tornasse realidade, pela Associação Juízes para a Democracia. Com a Lei Estadual nº 9.351/1996, tivemos um número crescente no ingresso de mulheres, pois a norma vedou a identificação dos candidatos.

Outra política mais recente é de 2018, do Conselho Nacional de Justiça, com a Resolução nº 255, que instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário. Mas não vejo ainda os frutos dessa resolução.

Sabemos que o preconceito contra as mulheres é uma questão estrutural, assim como o racismo é estrutural, o que reflete em tudo, inclusive nas carreiras jurídicas. E o vemos claramente quando constatamos que quase não temos mulheres em cargos de direção. Isso não é exclusivo do Judiciário. O mesmo acontece no Ministério Público, na OAB e na AASP. Até hoje só tivemos uma mulher eleita para o Órgão Especial do TJSP, em 2019.

A assimetria na ocupação de cargos, certamente, irá se alterar, assim como se altera a participação de negros e negras, com a introdução recente da política de cotas na magistratura.

A mulher no mundo do Direito não é diferente da mulher em todas as outras áreas. Somos uma sociedade patriarcal em luta pela igualdade. A assimetria está em todas as relações: na ordem pública e privada. Não é por outro motivo que o Dieese detectou, por exemplo, que as mulheres diretoras e gerentes têm rendimento inferior ao dos homens em cerca de 30%; que as mulheres que têm Ensino Superior recebem 38% menos; que as mulheres gastam o dobro de horas de dedicação aos afazeres domésticos.

Enfim, temos muito para construir um mundo mais justo e igualitário.

A senhora foi uma das fundadoras da Associação Juízes para a Democracia (AJD). É possível ser um juiz garantista sem passar a impressão de que se aumenta a impunidade?

Kenarik Boujikian: Colocar impunidade como sinônimo de garantismo é um grande erro. O termo garantismo que usamos vem dos estudos de Luigi Ferrajoli, que foi um juiz italiano vinculado à Magistratura Democrática e professor. É um sistema para todas as áreas do Direito. Podemos dizer que é, em certa medida, o sinônimo do Estado Democrático de Direito, com todas as consequências que este termo traduz, especialmente um sistema constitucional com garantias e princípios fundamentais, aplicado em todo o sistema de Direito.

Ser juiz garantista é dar cumprimento à função que é obrigatória para o Estado-Judiciário.  Significa aplicar as normas nacionais e internacionais para a proteção de cada indivíduo contra o Estado; e, garantindo um indivíduo, o juiz está protegendo todas as pessoas, toda a comunidade, todo o país e todo o sistema constitucional.

Isto não significa impunidade. Significa absolver ou condenar, com a proteção erigida pela Constituição, tutelando as liberdades do cidadão diante das várias formas de exercício arbitrário do poder.

A equivocada equiparação vem muito da desinformação do grande público, com o que os meios de comunicação contribuem. Temos que mostrar o sentido real do garantismo e o que ele reverbera para a democracia.

Em 2016, a pedido de um desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a senhora foi submetida a processo disciplinar, por ter soltado réus que estavam provisoriamente presos por tempo superior às penas originalmente fixadas. Acha que o fato escancarou algum tipo de seletividade do Judiciário brasileiro?

Kenarik Boujikian: Certamente. Este procedimento (PAD) revelou muitas facetas. A primeira delas foi a seletividade penal. E mostrou como se encontra o caótico sistema penitenciário. Nem eu acreditei quando vi o primeiro processo que parou na minha mesa com a pena vencida.

O PAD mostrou, para além da lentidão do Judiciário, que o sistema de justiça não tem controle sobre a situação dos presos. Isso já tinha sido detectado pelo CNJ, em razão do mutirão carcerário realizado em São Paulo, em 2012, quando se registrou que havia prisões indevidas, justamente pela hipótese pela qual eu fui processada.

No relatório do CNJ constou que havia casos de manutenção de prisão sem que a apelação do Ministério Público tivesse sido julgada pelo Tribunal de Justiça, sem observar que a prisão da pessoa já restava sem amparo legal.

Neste período redobrou a atenção do CNJ sobre a questão do controle das penas. Lembro que, pouco depois, em evento realizado na sede da AASP, o presidente do CNJ mencionou a situação e a busca que realizavam para aprimorar o sistema de controle.

Outro aspecto importante foi colocar a nu o princípio da independência judicial, como instrumento de garantia que o jurisdicionado tem, no sentido de que será julgado por um juiz isento das pressões internas do Judiciário, já que a pressão que se pretendeu exercer contra mim, com o processo administrativo, tinha, no fundo, a divergência de um entendimento judicial.

O PAD foi julgado posteriormente pelo CNJ, que determinou o arquivamento, pois eu não tinha cometido qualquer falta funcional, e todos os conselheiros fizeram referência ao princípio, com palavras fortes, e acentuaram que a pena que o TJSP quis aplicar foi uma censura ideológica.

O TJSP é considerado conservador na área penal. Pesquisa da AMB, de 2015, a partir de respostas de juízes às questões penais, indica esse perfil. Dados de pesquisa da FGV já mostraram que o tribunal é refratário às posições consolidadas em matéria penal mais benéficas aos réus. Os dados do STJ, que tem o papel de uniformizar a interpretação da lei federal, mostram que muitos dos recursos que o abarrotam revelam a resistência a acompanhar, particularmente, as decisões consideradas mais favoráveis aos acusados.

Finalmente, o PAD mostrou que há um preconceito ainda forte. Tenho a percepção de que há mais impacto quando aquele que diverge é mulher, mas claro que este aspecto é muito subliminar. De algum modo, o PAD foi positivo, porque colocou todas essas questões a lume, de modo que a sociedade e as instituições puderam discutir todos esses aspectos.

No lado pessoal, em razão de fugir à compreensão humana que um juiz possa ser condenado porque expediu alvará de soltura naqueles casos, recebi uma onda de solidariedade intensa, de pessoas e de inúmeras entidades, dentre elas a AASP. Devo compartilhar que a solidariedade é dos sentimentos mais belos que o ser humano pode vivenciar.

Qual a sua opinião sobre o Poder Judiciário no atual contexto político do país? Há um excesso de exposição na mídia?

Kenarik Boujikian: Penso que o grande problema do Judiciário não é exatamente a sua exposição. O problema maior está no cumprimento de sua função. É isto que está levando a um voto de não confiança da população, o que é péssimo para a democracia.

Veja: a FGV realiza a pesquisa chamada Índice de Confiança na Justiça (ICJ). No período de 2013 a 2017, a confiança no Judiciário caiu dez pontos percentuais, passando para 24% em 2017, significativo, pois em anos anteriores não havia oscilações dessa magnitude.

Penso que o Poder Judiciário está disfuncional, o que se pode analisar por diversos aspectos. Em relação ao STF, vemos uma expansão que foge da determinação constitucional. A ministra Cármen Lúcia, quando presidenta do Supremo, realizou uma reunião para criar uma comissão para debater políticas de segurança pública. O ministro Toffoli também fez reuniões com outros poderes para discutir temas atinentes à reforma de legislação.

Não é este o papel do Judiciário, e, quando ele escapa dos marcos constitucionais, acaba por gerar a desconfiança em relação ao Poder.

A Corte não funciona de forma colegiada. A pauta, em termos práticos, fica nas mãos de um ministro. O relator é que coloca em pauta quando deseja; o ministro presidente coloca o processo em julgamento na data que entender devida.

A disfuncionalidade vem acrescida do fenômeno do lawfare. Papa Francisco foi quem fez a melhor avaliação sob esse prisma, quando realizou um seminário, sobre juízes e direitos sociais, em junho de 2019, oportunidade em que registrou sua preocupação com essa nova forma de risco para a democracia, por meio do uso indevido de procedimentos legais e judiciais, usados para minar os processos políticos emergentes, e que tendem à violação sistemática dos direitos sociais. Para garantir a qualidade institucional dos Estados, disse ser fundamental detectar e neutralizar esse tipo de prática, que resulta de uma atividade judicial imprópria, em combinação com ações de multimídia.

Creio que é essa atividade imprópria que diminui o Poder Judiciário. Precisamos de um Judiciário democrático, que seja capaz de dar as respostas necessárias para o projeto que o país agasalhou na Constituição Federal de 1988. É neste documento que identificamos a vontade popular.

Esta é a fonte do que o povo brasileiro tem como expectativa de construção da nossa sociedade: sob quais princípios, fundamentos e patamares éticos. Um Judiciário democrático consegue fazer essa leitura e interpretar essas normas sem redução dos direitos fundamentais.

Kenarik Boujikian, desembargadora Tribunal de Justiça de São Paulo (1989-2019).

Fonte: Núcleo de Comunicação AASP

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