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Direito de Família e pandemia: tempo de reflexão e transformação

Por Silvia Felipe Marzagão

A incerteza tomou conta da vida humana. A hesitação sobre o futuro das relações interpessoais, todos os dias, toma de assombro a sociedade, que está vivenciando situações, até então, desconhecidas. Diante desse novo cenário, as famílias, certamente, não serão mais as mesmas. E, do mesmo modo, as relações jurídicas que permeiam as questões familiares também não.

Nunca os valores como solidariedade, empatia, respeito e compreensão foram tão necessários às relações familiares. Os conflitos de outrora (muitos banais, inclusive) não têm mais lugar num ambiente em que o bem mais primordial do ser humano – a vida – corre riscos. A perspectiva, evidentemente, muda.

Todavia, os questionamentos – ainda atrelados à antiga realidade pré-Covid-19 – são inúmeros, e especialmente aqueles que digam respeito aos direitos das crianças e adolescentes mais nos afligem.

Há muitas perguntas e poucas respostas. Aos poucos os problemas estão batendo às portas do Judiciário, que, também numa velocidade ímpar, tem tido que se reinventar. O tempo – e o procedimento – das demandas de outrora não atende mais a vida pandêmica.

Mais do que nunca, os aplicadores do direito das famílias valer-se-ão dos princípios familiaristas, especialmente o do superior interesse da criança (art. 227, caput, CF) e o da proteção integral da criança (art. 1º do ECA) para solucionar as adversidades.

Dúvidas ficam no ar, especialmente sobre convivência/cuidado parental e alimentos: como garantir que a criança em quarentena esteja segura e, ao mesmo tempo, possa avistar-se com os genitores em convivência compartilhada? Como dividir responsabilidades parentais em tempos pandêmicos? E os pagamentos de pensões devidas aos infantes (e a observância de suas necessidades, portanto) diante das adequações à nova realidade econômica?

No tocante ao primeiro tópico, o mais importante, a nosso ver, é que, garantida a incolumidade física da criança, se mantenha intacto o convívio e o equilíbrio nas funções parentais.

Assim, sendo possível o convívio físico com segurança, que seja ele mantido. Isso, inclusive, viabiliza que os pais cuidem da prole de maneira equilibrada, sem sobrecarregar nenhum deles. Estando os genitores em isolamento social e garantido o trânsito seguro da criança, não há razão para suspensão do convívio.

Aliás, vale pontuar que países europeus têm adotado essa postura. Na França, seguem autorizados os trajetos entre as duas residências para efetivação de guarda alternada ou compartilhada dos filhos. Na Itália,[1] do mesmo modo, não há limitação para pais divorciados que precisam sair para buscar ou ver os filhos.

Eventualmente, ajustes podem vir a ser recomendados. Aplicar ao período de quarentena o regramento de férias nos parece o adequado. Isso garante que a criança fique menos exposta a idas e vindas, com o convívio equilibrado e o cuidado conjunto preservado.

Excepcionalmente, em casos em que o contato físico seja arriscado – caso em que, por exemplo, genitores estejam expostos ao vírus de forma mais frequente (profissionais de saúde, e.g.) – o regime de convivência presencial pode vir a ser suspenso, sem significar, todavia, ruptura de laços. Assim, ao menos de maneira virtual, a convivência e o cuidado devem ser mantidos.

O segundo tópico apontado diz respeito ao pagamento de alimentos.

De fato, é possível – e provável – que os períodos de quarentena impactem a vida financeira daquele que paga alimentos. O que não se pode admitir, todavia, é que a pandemia sirva de pretexto automático para reduções no importe.

A perda de capacidade financeira não pode ser presumida, sendo de rigor a análise também sob o viés das necessidades do credor da verba.

As necessidades continuarão a existir no mesmo patamar anterior. A redução, portanto, deve observar critérios concretos, até mesmo para evitarmos abuso de direito.

O que se vê, portanto, é que, para garantirmos a convivência, os cuidados parentais e a subsistência da criança nessa realidade pós-pandemia, precisaremos buscar alternativas que se adéquem à nova sociedade. E, para a análise de novas realidades, novos olhares se impõem.

Esses olhares – sob pena de acentuarmos a intensa desigualdade de gênero – não podem deixar de considerar que, na maioria dos lares, as cuidadoras diretas ainda são as mulheres e também são elas que recebem (para si ou para os filhos) os alimentos.

Assim, mister que todas as alterações (necessárias, não se olvide) observem a realidade de gênero, a família constitucionalmente tutelada, os princípios norteadores e as peculiaridades familiaristas que, desde sempre e para sempre, estão lado a lado do mais dinâmico (e afetivo) de todos os campos do Direito: o Direito das Famílias.

*Silvia Felipe Marzagão. É diretora do IBDFAM, secretária da Comissão de Direito de Família do IASP e cofundadora do Women in Family Law.

[1] Disponível em: http://www.salute.gov.it/portale/nuovocoronavirus/dettaglioNotizieNuovoCoronavirus.jsp?lingua=italiano&menu=notizie&p=dalministero&id=4224.

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