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Declaração Universal dos Direitos Humanos septuagenária e desafiada

Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 70 anos.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio de Assembleia Geral, adotou, em 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Documento histórico formado por 30 artigos, que serviu de base inspiradora para a construção de diversas leis e constituições em todo o planeta, foi adaptado para mais de 500 idiomas, sendo considerado pelo Guinness Book of World Records como o de maior número de traduções disponíveis.

Sete décadas após seu lançamento, crises humanitárias despertaram a preocupação de órgãos internacionais; nesse período o ranço contra seus defensores, atos de intolerância étnica, perseguições políticas e de gênero, além de atrocidades e crimes contra a humanidade, puseram em xeque os valores contidos na Declaração.

Expondo uma visão atual, de quem exerceu a função de secretário de Direitos Humanos, o acadêmico carioca Paulo Sérgio de Moraes Sarmento Pinheiro foi um dos convidados do Fórum de Direitos Humanos realizado na sede da AASP em 2018. Acompanhe o bate papo que tivemos com ele.

O Brasil possui ferramentas para garantir os direitos humanos da mesma forma a toda a população?

A situação dos direitos humanos no Brasil é a pior possível! O governo atual pôs abaixo a operacionalidade que muitos pesquisadores e militantes levaram décadas para construir. Hoje os direitos humanos não são uma prioridade de agenda. Basta ver que o assassinato da vereadora Marielle Franco ainda não foi esclarecido, nenhuma satisfação foi dada a quem quer que seja. O Brasil é o campeão de assassinatos de defensores de direitos humanos, quer dizer, apenas no ano passado foram 58, e nos três últimos anos, o Brasil sempre esteve em primeiro lugar no continente americano. Você acha isso normal? Quem se lembrou da Declaração, que completa 70 anos, foi a AASP. Eu não me recordo de outra associação ter realizado um fórum como este. O aniversário, ainda que possa trazer alguma frustração, é um momento de avaliação do que influenciou na ordem dos Estados e de discussão da implementação dos seus princípios.

As regiões periféricas do Brasil historicamente apresentam grandes dificuldades econômicas e constatados abusos. Como este cenário descaracteriza uma política humanitária?

Nesse raciocínio, a região Norte vive um problema gravíssimo, a questão de terras. Isso tudo nos mostra o mau funcionamento do sistema jurídico, especialmente pelo horror ao tomar conhecimento de que temos entre 650 e 700 mil presos, e, desses, 240 mil sem sentença. O que diferenciava o Brasil era que, apesar de esses horrores acontecerem há tempos, desde o governo Sarney até o governo Dilma, foi montada uma política de Estado de direitos humanos que o governo atual pôs abaixo. Evidentemente se espera que, com as eleições deste ano, esta política de Estado possa vir a ser retomada, pois graças a isso o Brasil foi reconhecido pela comunidade internacional como um interlocutor respeitado, porque durante toda a democracia nós sempre fomos muito transparentes. Os relatórios que o Brasil apresenta aos órgãos de monitoramento não mentem, são muito verazes. Não só pela importância econômica do Brasil, mas também por esses defensores jogarem o jogo da verdade que o Brasil faz em relação ao que ocorre internamente. O outro milagre brasileiro evidentemente é a sociedade civil. Viajo pelo Brasil inteiro e encontro organizações não governamentais (ONGs) dedicadas às temáticas mais diversas. Então é um fator que destaco em meio a toda essa supressão de direitos.

A Constituição Federal Brasileira completa 30 anos em 2018. Ela ainda se mantém como uma forte aliada na defesa dos direitos fundamentais?

O momento não poderia ser pior, com o Supremo Tribunal Federal (STF) decidindo e julgando contra ela. Por exemplo, a questão da interpretação do trânsito em julgado em última instância, a sentença de fato.

“O governo atual pôs abaixo a operacionalidade que muitos pesquisadores e militantes levaram décadas para construir.” Paulo Sérgio de Moraes Sarmento Pinheiro

Contra o princípio constitucional jamais se discute. Não é o Tribunal Superior que define, nem o Tribunal de Justiça, muito menos a Operação Lava Jato, que desvendou uma porção de tramas, mas que se tornou uma operação política em relação a alguns segmentos. Desde o retorno da democracia, nós evoluímos em termos, mas hoje, especificamente, estamos em um momento regressista, porque o governo coloca em xeque tudo o que a sociedade civil conquistou; não digo só em relação aos operadores do Estado e fora dele, mas tudo o que a sociedade social foi capaz de construir. Atravessamos um momento grave de desconstrução da democracia, isso para não falar em desconsolidação da democracia pela qual tanto lutamos. Basta ver que somos governados por uma cleptocracia, em que presidente e ministros estão submetidos a processos.

O Poder Judiciário é capaz de cometer crimes contra os direitos humanos?

Não tenho a menor dúvida! Por que um Poder do Estado iria ficar ileso a questões de direitos humanos? É preciso lembrar que vários crimes têm sido investigados e processados com base em vendas de sentenças, vantagens indevidas e articulações com o crime organizado, além de membros demitidos que ainda recebem salários. Ainda vai demorar para que possamos crer que o modelo existente no Poder Judiciário seja um modelo de respeito aos direitos humanos.

Propor a intervenção federal como solução para o problema da segurança pública do Rio de Janeiro foi um exagero do governo? Como o senhor enxerga a questão?

Vários órgãos da imprensa escrita, e mais lamentavelmente ainda os canais de TV aberta, estão consagrando a intervenção. Evidentemente que há retrocesso nessa intervenção. No ano passado o governo atual deu um passo atrás em relação ao que havíamos conseguido no governo de Fernando Henrique, com o projeto de Hélio Bicudo apoiado pelo Nelson Jobim, que retirou os crimes praticados pelos militares, quando crimes comuns, da Justiça Militar. A naturalização da intervenção não passa de uma ilusão para a população, que está acuada. A forma demagógica e eleitoreira como foi criado o Ministério da Segurança Pública, com nomeação de membro das Forças Armadas para ser ministro, é uma prova disso. É evidente que o tráfico nas favelas é mantido pelo consumo das classes médias altas e das classes dominantes, que são aquelas que têm o dinheiro para comprar a droga. Isso não está sendo dito. Evidente que a falta de concretização de vários instrumentos que estão presentes na Carta de 1988, que dizem respeito à propriedade dos meios de comunicação, é uma questão que deve merecer todo o debate. No caso específico dos programas policiais, eles são todos totalmente ilegais, não só por fazer apologia à violência, mas no papel de concessões públicas, que não podem ser utilizadas para esses fins específicos em prol de ações do governo.

O que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) trouxe de avanços significativos para as investigações contra os crimes praticados na época do regime militar? Como foi a produção do relatório final?

Foi um trabalho difícil, porque primeiro os membros da comissão precisaram entrosar as suas visões. Houve um erro, a meu ver, de vontade democrática, de o coordenador ser rotativo. Ser um de cada vez foi um desastre. Algo positivo foi a não interferência do governo. A presidente Dilma nunca interferiu, ela nem leu o relatório. Nós entregamos a ela na véspera do lançamento, e nenhum ministro deu palpite, ao contrário, ajudaram bastante. O conjunto das outras 42 comissões de direitos humanos que já existiram fez um relatório realmente admirável. Não fui eu somente que fiz, e isso graças ao último coordenador, que foi o Pedro Dallari, com uma experiência parlamentar muito grande. O relatório está bem fundamentado. Há uma lista dos perpetuadores de violações e 20 recomendações. Há inclusive a criação de um secretariado para o segmento do relatório que o governo atual jogou no lixo, sem fazer absolutamente nada. Acho que um dos últimos atos do Rogério Sottili, que era ministro dos Direitos Humanos, foi justamente a criação deste secretariado do segmento. Este governo não disse nada, nem fará nada, mas espero que o novo governo possa retomar. Precisa ficar bem claro que a Comissão da Verdade não tem nenhum papel de julgar. A comissão tem que investigar, documentar e propor recomendações, e isso está no site da CNV.

 O Estado tem a real dimensão da necessidade de uma política de direitos humanos voltada para crianças e adolescentes? O que conquistamos nos últimos anos?

Nós só temos retrocesso! Nós temos duas frentes. A primeira é a da supressão dos direitos econômicos e sociais desde o bebê até o adolescente de 18 anos, que, com o congelamento das despesas sociais por 20 anos, galgaram o status de vítimas da linha de frente. Todas as políticas públicas no Brasil avançaram por causa das convenções e políticas específicas. Não basta termos políticas universalistas, elas precisam estar relacionadas às crianças desde recém-nascidas até a adolescência. A segunda é das questões de liberdade dos direitos civis para crianças e adolescentes. Esse monstro que é a proposta de lei da redução da maioridade penal, que está na agenda do governo atual, e da intervenção e derrubada do estatuto do desarmamento não ajuda em nada. O Congresso, então, aprova qualquer recuo autoritário. É tudo uma ilusão! Uma agitação para a massa. Apenas mais uma política de apartheid estrutural e efetivo contra os jovens afrodescendentes.

Saindo um pouco das questões de âmbito nacional, a Comissão de Inquérito da ONU sobre Crimes na Síria investiga há alguns anos a situação de uma das piores crises humanitárias do mundo. O que o senhor destaca do trabalho realizado pela comissão?

A Comissão Independente Internacional de Investigação sobre a República Árabe Síria foi criada em setembro de 2011, com mandato renovado para 2019. Somos três comissionados, uma americana, um egípcio e eu. Temos uma equipe de mais 40 pessoas que trabalha em Genebra. Basicamente todos são investigadores. A comissão fica responsável por publicar um relatório sempre que solicitado (foram 23 relatórios no período). Viajamos para colher todo tipo de informação; muito do trabalho da comissão tem o objetivo de documentar as violações dos direitos humanos, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade. Muitos acham que a comissão pune, mas ela não é um tribunal. Nós não julgamos nada! Nós somente fundamentamos, documentamos e fazemos recomendações de um diálogo com todos os Estados-membros. O grande problema, talvez o maior obstáculo, é que o governo sírio não nos autoriza a entrar no país. Mesmo assim, trata-se de um trabalho fenomenal de se realizar do lado de fora e também, por vários meios e fontes, trazer o que desejam esconder. O fato de não podermos entrar na Síria não significa que não temos informações sobre o que acontece dentro da república árabe. O conflito evoluiu demais, são novos países envolvidos, novas alianças, mas também podemos afirmar que o diálogo avançou muito. Os ataques ao território sírio orquestrados pelos Estados Unidos e seus aliados não solucionam nem alteram a natureza da guerra. Na verdade, é mais uma atitude política do que qualquer outra coisa. A solução do conflito não passa por uma solução militar. Para nós, defensores dos direitos fundamentais, o que mais preocupa é que recorrentes ataques ocasionem repercussões para a população local, civis desavisados.

Fonte: Núcleo de Comunicação AASP

 

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