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Ação Monitória ou “Ação Moneytoria”? Uma Análise Crítica sobre a Instrumentalização do Processo Civil pelo Setor Bancário

Autor: Alan Duarte Villas Boas

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Data de produção: 09/12/2026

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Os artigos postados neste canal são apresentados por associadas e associados e refletem visões, análises e opiniões pessoais, não correspondendo, necessariamente, ao posicionamento da AASP.

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INTRODUÇÃO

 

O presente artigo propõe uma análise crítica e axiológica do uso da Ação Monitória por instituições financeiras. Argumenta-se que o instituto, concebido para dar celeridade ao credor de boa-fé com prova escrita robusta, foi sistematicamente desvirtuado, tornando-se uma ferramenta para validar documentos nulos e suprimir o contraditório.

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Através da análise do efeito ipso iure do Art. 701, § 2º, do CPC, demonstra-se como a monitória se transformou em uma “Ação Moneytoria”, qual seja, um mecanismo lucrativo que, sob o verniz da legalidade, gera um grave desequilíbrio processual e viola garantias constitucionais.

I, INTRODUÇÃO: A AXIOLOGIA DO INSTITUTO MONITÓRIO

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O Art. 700 do Código de Processo Civil estabelece a Ação Monitória como um procedimento especial destinado àquele que, com base em “prova escrita sem eficácia de título executivo”, busca exigir uma obrigação. A intenção do legislador foi nobre; criar um caminho célere para o credor de boa-fé, detentor de um documento que, por um detalhe formal, não constitui um título executivo extrajudicial, mas que demonstra inequivocamente a existência do crédito. Pensemos em um pequeno empresário com um cheque prescrito ou um e-mail de confissão de dívida, como um exemplo.

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Contudo, a prática forense revela uma profunda distorção dessa finalidade, especialmente quando o autor da ação é uma instituição financeira. Bancos, cuja própria natureza do negócio é a produção em massa de títulos executivos formais (como as Cédulas de Crédito Bancário), paradoxalmente, tornaram-se os maiores usuários da Ação Monitória.

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A pergunta que se impõe é, por quê? A resposta revela a transformação da Ação Monitória em uma “Ação Moneytoria”, um instrumento não de cobrança, mas de validação e lucro sobre a vulnerabilidade processual do consumidor.

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II. A PERVERSÃO SISTÊMICA: A MONITÓRIA COMO MÁQUINA DE LAVAGEM DE PROVAS NULAS

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Diferente do credor comum, o banco não recorre à monitória por ser um “hipossuficiente probatório”. Ele o faz de forma estratégica, utilizando o procedimento como uma arma para validar documentos inválidos.

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Contratos de adesão sem assinatura, planilhas de débito unilaterais repletas de juros capitalizados e encargos ilegais, documentos que não passariam na mais elementar análise de autenticidade pericial, são admitidos como “início de prova escrita”. O filtro judicial inicial, que deveria ser um controle rigoroso de admissibilidade, torna-se, na prática, um mero carimbo.

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Essa prática representa uma fraude processual sistêmica que:

1. Afronta o Código de Defesa do Consumidor: Inverte brutalmente o ônus da prova, forçando o consumidor, a parte vulnerável, a produzir uma prova diabólica contra a complexa engenharia contábil do banco.

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2. Viola Princípios Constitucionais: Fere de morte a paridade de armas, o contraditório e a ampla defesa, ao permitir que um título executivo seja criado a partir do nada.

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A Ação Monitória, nas mãos de um banco, deixa de ser um instrumento de justiça para se tornar uma máquina de lavagem de provas nulas. Ela não “conduz” uma execução, ela a cria artificialmente, usando o Poder Judiciário para legitimar o ilegítimo.

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III. O EFEITO IPSO IURE: A ALQUIMIA PROCESSUAL QUE TRANSFORMA NULIDADE EM COISA JULGADA

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O ponto central desta fraude processual é o efeito ipso iure previsto no Art. 701, § 2º, do CPC.

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É aqui que a “mágica” acontece, e ela engana a muitos.

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Quando o devedor, por qualquer motivo, não apresenta os Embargos à Monitória no prazo legal, o mandado inicial é automaticamente convertido em título executivo judicial. O erro fatal é pensar que essa conversão “valida” o contrato original ou confere liquidez a ele. Não! O que ocorre é muito mais grave.

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O “despacho” de conversão não é uma sentença de mérito. O juiz não analisa os juros abusivos, a prescrição do contrato original ou a validade da assinatura. A decisão funciona como um “carimbo de autenticação”, ela pega aquele amontoado de papel ilíquido e nulo e, por uma ficção legal, o transforma em um título executivo judicial novo e blindado.

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A consequência é devastadora:

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  • ◾ Preclusão da Defesa: Toda a matéria de mérito que poderia ser alegada nos embargos (juros abusivos, nulidade de cláusulas, aplicação do CDC) morre. O devedor não poderá mais discuti-la.

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  • ◾ Limitação da Defesa Futura: A execução que se inicia não é mais do título extrajudicial, mas do título judicial. A defesa cabível não é mais os “Embargos à Execução”, mas a restritíssima “Impugnação ao Cumprimento de Sentença”, onde só se pode alegar fatos posteriores à formação do título (como pagamento ou prescrição da pretensão executiva).

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O ipso iure, portanto, não dá liquidez ao título original. Ele “lava” a ilegalidade original com o verniz da coisa julgada, tornando a defesa posterior praticamente impossível.

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IV. A CAPITULAÇÃO DO JUDICIÁRIO: A NEGAÇÃO DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL COMO SINTOMA

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Essa sistemática gera “monstros processuais” natimortos, ilíquidos e impossíveis de serem conduzidos com justiça. O resultado, observado na prática, é a capitulação do próprio Judiciário.

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Muitas vezes, “encurralado” entre uma tese de nulidade irrefutável apresentada pelo devedor em sua impugnação e a completa desordem probatória e processual do banco, o magistrado, ao invés de cumprir seu dever de julgador, e extinguir a execução nula, busca uma “válvula de escape”. A suspensão do processo por ausência de bens (Art. 921 do CPC), determinada de ofício e sem o preenchimento dos requisitos legais, é o sintoma mais claro dessa falência.

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Essa decisão não é um simples erro. É a confissão de que o sistema, como está, quebrou. É a negação da prestação jurisdicional como uma fuga de um processo que o uso predatório da Ação Monitória tornou impossível de julgar.

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V. CONCLUSÃO

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A Ação Monitória não é, em si, a vilã. O problema reside em seu uso predatório por quem detém o poder econômico e técnico, em um cenário de massiva desigualdade. A “Ação Moneytoria” é a prova de que a aplicação cega de um procedimento, sem a devida análise de seu propósito e das garantias fundamentais, gera injustiça.

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Cabe ao Poder Judiciário, como guardião do Devido Processo Constitucional, resgatar seu papel. É preciso que os magistrados exerçam um filtro inicial mais rigoroso, que rejeitem petições monitórias instruídas com documentos manifestamente frágeis e que, acima de tudo, não capitulem diante do caos processual.

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O dever de julgar, enfrentando as teses de nulidade, é a única forma de proteger o cidadão e restaurar a integridade do processo como instrumento de justiça, e não como um balcão de negócios para a validação de lucros indevidos.

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O Poder Judiciário serve a Constituição e seu poder de julgar emana dela! Se o mesmo poder concedido fere quem concede; a luz que surgiu em 1988, após 20 anos de escuridão, paira como uma sombra cinza esperando a luz se apagar.

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Alan Duarte Villas Boas

Minibio: Advogado com atuação em Direito Civil e de Família. Pós-graduado em Direito das Sucessões e Direito Processual Civil. Autor de TCC sobre Nietzsche e o Direito, orientado por Edgar Solano (Univap), com banca de Luiz Carlos Andrade de Aquino.

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