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ESPAçO ABERTO
Coexistência de Direitos em Condomínio: Uma Nova Perspectiva para a Harmonia Social
Autor: Gianpaulo Scaciota
Data de produção: 10/6/2025
É com grande satisfação que me dirijo à estimada Associação dos Advogados para apresentar uma reflexão que considero fundamental para a evolução das relações sociais, especialmente no complexo e dinâmico universo condominial. Há uma máxima, repetida à exaustão por leigos e especialistas no direito condominial, que afirma: “o direito de um termina quando começa o do outro“. Embora essa frase possa parecer, à primeira vista, um preceito de bom senso e limitação, minha experiência de mais de trinta anos na mediação de conflitos e na condução de assembleias condominiais me levou a refutá-la veementemente. Ela serve e é aplicável ao direito processual e não ao direito condominial.
Acredito que essa perspectiva, ao invés de promover a harmonia, muitas vezes fomenta a disputa e a percepção de que o exercício do próprio direito é inerentemente um obstáculo ao direito alheio. Ela estabelece uma fronteira rígida e, muitas vezes, combativa entre as liberdades individuais, ignorando a possibilidade de um exercício simultâneo e colaborativo. A ideia de que um direito precisa “terminar” para que outro “comece” pressupõe um cenário de escassez ou de conflito intrínseco, onde a afirmação de uma liberdade necessariamente implica a negação de outra. Em verdade, o meu direito não precisa terminar para que o do outro comece, e vice-versa. A máxima que deve ser utilizada e aplicada, e que proponho como pilar para uma convivência verdadeiramente equânime, é: OS DIREITOS COEXISTEM. Somente no exercício comum e validado simultaneamente dos direitos é que se alcança a harmonia, a equidade e a isonomia.
Essa coexistência não é uma utopia, mas um imperativo para a construção de comunidades mais justas e pacíficas. Ela se alinha perfeitamente com princípios basilares do nosso ordenamento jurídico, que há muito tempo transcendem a noção de direitos absolutos e individualistas. O conceito de condomínio, conforme delineado no Direito das Coisas, refere-se a uma situação em que mais de uma pessoa possui propriedade sobre um mesmo bem. Como bem observa o renomado jurista Washington de Barros Monteiro, o Direito Brasileiro adota a teoria da propriedade integral ou total, na qual cada condômino possui direitos sobre toda a coisa, mas esses direitos são delimitados pelos direitos dos demais consortes. Isso implica que o direito de cada um é autolimitado pelo do outro, na medida de suas quotas, precisamente para possibilitar sua coexistência harmoniosa. Não se trata, portanto, de um anular o outro, mas de uma interdependência essencial para o funcionamento do coletivo, onde a fruição plena do direito individual é condicionada pela necessidade de permitir a fruição dos direitos alheios.
Além disso, a coexistência de direitos encontra eco em princípios fundamentais como a função social da propriedade e a boa-fé objetiva. A função social da propriedade, insculpida no Art. 5º, inciso XXIII, da nossa Constituição Federal, e detalhada no Art. 1.228, § 1º, do Código Civil, nos lembra que o direito de propriedade não é absoluto, devendo ser exercido em conformidade com o bem-estar coletivo. Isso significa que a individualidade cede espaço à coletividade quando necessário, mas não de forma a anular o direito individual, e sim a temperá-lo para o benefício mútuo. Em um condomínio, a função social da propriedade se manifesta na necessidade de que o uso da unidade privativa não prejudique o sossego, a saúde e a segurança dos demais condôminos, nem afete a destinação da edificação. Da mesma forma, a boa-fé objetiva, consagrada no Art. 422 do Código Civil, impõe um dever de conduta leal e cooperativa entre as partes. Ela exige que o exercício de um direito não prejudique injustamente o direito do outro, mas que ambos possam ser exercidos de forma complementar e harmoniosa, pautados pela lealdade, pela cooperação e pela vedação ao abuso de direito. Estes princípios jurídicos demonstram que a ideia de coexistência já é um pilar de nosso sistema legal, bastando aplicá-la com a devida clareza nas relações condominiais e na interpretação das Convenções de Condomínio e Regimentos Internos.
A experiência demonstra nos dizeres do Autor, Gianpaulo Scaciota: “que as pessoas tendem a obedecer uma norma quando a mesma é fruto de um tratado social, de uma convenção coletiva e não por imposição legal”. A coexistência de direitos, portanto, não é apenas uma teoria jurídica, mas uma prática que emerge do reconhecimento mútuo e da construção conjunta de regras de convivência. Em um universo perfeito – ciente de sua dificuldade – colocar-se no lugar do outro, ter empatia e permitir que o outro exerça o seu direito ao mesmo tempo que você, é uma arte. É a arte de ceder um pouco para que ambos ganhem muito em qualidade de vida e paz social, transformando a potencial fricção em sinergia.
Para ilustrar essa perspectiva, cito uma passagem do Professor Clóvis de Barros, que de forma brilhante exemplifica o cerne da questão: Quantas vezes você, em sua poltrona em viagem de avião, teve a pessoa à sua frente perguntando se podia reclinar a poltrona? Eu, Gianpaulo, com meus 1,96m de altura, sofro com isso. E nas inúmeras viagens que fiz de avião, NUNCA me perguntaram. Ao contrário, ao sentir a resistência de meus joelhos, empurram ainda mais. A pessoa tem o direito de reclinar a poltrona? Por certo que sim. Eu tenho o direito de viajar com um mínimo de conforto e sem ter meus joelhos esmagados? Por certo que sim. A coexistência dos direitos resolveria esse impasse. Não se trata de um anular o outro, mas de encontrar um ponto de equilíbrio, talvez um reclinamento parcial, ou um aviso prévio que permita ao outro se ajustar. E o mais fascinante na passagem do Professor Clóvis é que, ainda que autorizado por ele, a pessoa à sua frente não baixou a cadeira. E por quê? Porque o laptop estava no apoio e o reclinamento o incomodaria. Este é o ápice da empatia e da coexistência: o reconhecimento espontâneo de que o exercício pleno do seu direito, naquele momento, poderia gerar um desconforto desnecessário ao outro, ou até mesmo a si próprio. Não foi uma imposição, mas uma escolha consciente baseada na percepção do impacto mútuo e na inteligência interpessoal.
Quando em condomínio chegarmos a esse nível de empatia, a coexistência de direitos será uma realidade palpável. Isso significa que o morador que deseja ouvir música alta considerará o vizinho que precisa de silêncio para trabalhar ou descansar, talvez optando por horários mais adequados ou volumes moderados, ou utilizando fones de ouvido. O proprietário de um animal de estimação garantirá que seu pet não perturbe a tranquilidade alheia, seja controlando latidos excessivos, recolhendo dejetos imediatamente nas áreas comuns, ou utilizando coleira e guia. A utilização das áreas comuns, como salão de festas, piscina ou academia, será pautada pelo respeito ao uso simultâneo e à preservação para todos, garantindo que o direito de um não impeça o do outro, através de agendamentos claros e regras de uso que permitam a rotatividade e a manutenção. O direito de um condômino de realizar reformas em sua unidade deve coexistir com o direito dos demais ao sossego e à segurança, encontrando um equilíbrio que permita a ambos serem exercidos simultaneamente, como a limitação de horários para obras barulhentas, comunicação prévia sobre interdições de elevadores ou áreas comuns, e o descarte adequado de entulhos. Até mesmo o direito de estacionar em vagas de garagem, por vezes apertadas, exige um exercício consciente para não prejudicar a manobra do vizinho. Não se trata de abrir mão de direitos, mas de exercê-los de forma consciente e colaborativa, reconhecendo que a vida em comunidade exige uma orquestração de liberdades individuais e uma constante negociação de limites.
Em suma, a proposta da coexistência de direitos transcende a mera aplicação de regras e adentra o campo da ética e da responsabilidade social. É um convite à reflexão sobre como podemos construir ambientes condominiais mais justos, pacíficos e, acima de tudo, humanos. A aplicação prática desse princípio exige a atuação de síndicos, administradoras e, sobretudo, advogados especializados em direito condominial, que possam orientar as comunidades na construção de suas normas internas (Convenções e Regimentos Internos) sob essa ótica, e na resolução de conflitos através de métodos consensuais, como a mediação, que naturalmente promovem a busca por soluções que contemplem os interesses de todos. Que a Associação dos Advogados de São Paulo possa ser um farol na disseminação dessa nova perspectiva, contribuindo para que o direito seja, de fato, um instrumento de união e não de segregação.
Assim, finalizo:
Em Condomínios o DIREITO de um, NÃO termina, quando COMEÇA o do OUTRO, eles COEXISTEM
Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da AASP .
Gianpaulo Scaciota
Minibio: Advogado. Mediador Certificado pelo IASP. Mestre em Direito pela Fadisp. Pós-Graduando PUC/RS Direito Digital.