AASP logo
AASP logo

Notícias

AASP analisa recentes mudanças na lei penal

A aprovação do Projeto Anticrime e da Lei de Abuso de Autoridade mudou significativamente o Direito Penal brasileiro nos últimos meses.

Para ajudar o associado, a AASP consultou os criminalistas Leonardo Sica, Daniela Meggiolaro, Renata Mariz e Paula Hyppolito para destrinchar os principais pontos dessas mudanças.

Confira abaixo:

Uma das inovações do projeto anticrime foi a criação do juiz de garantias. Qual o impacto desse novo ator processual e quais seriam suas atribuições?

Renata Mariz: A inovação legislativa estabelece que o juiz de garantias atue no controle da legalidade da investigação criminal, ou seja, decidirá procedimentos cautelares, tais como prisão provisória ou outras medidas cautelares substitutivas, quebras de sigilo, buscas e apreensões, interceptações telefônicas, dentre outras medidas urgentes e/ou necessárias no curso do inquérito policial. Assim, o juiz de garantias atuaria apenas na fase do inquérito policial e outro magistrado na instrução processual, possibilitando a imparcialidade do julgador e o respeito ao modelo acusatório consagrado na Constituição Federal, já que não teria este nenhuma participação ou mesmo contato com a prova produzida durante a prova pré-processual.

Será necessária a contratação de mais pessoas ou mesmo a criação de novos cargos?

Renata Mariz: Isso é uma questão de organização judiciária. É possível a implementação do juiz de garantias sem a necessidade de contratação de novos juízes. Trata-se, na realidade, de uma questão de distribuição de competências e especialização de funções. Atualmente um processo judicial eletrônico permite facilmente que o juízo de outra comarca ou subseção atue em um lugar de um só magistrado. O CNJ, antecipando-se à discussão a esse respeito, criou, por meio da Portaria nº 214, grupo de trabalho para elaboração de estudo relativo aos efeitos de aplicação da nova legislação.

O juiz de garantias trará maior morosidade às investigações ou dificultará a elucidação de crimes?

Renata Mariz: A criação do juiz de garantias em nada atrapalha ou dificulta o procedimento penal. Apenas irá trazer um distanciamento entre o juiz que participou da prova na fase pré-processual e aquele que irá julgar a ação penal.

Há afronta ao princípio do juiz natural?

Renata Mariz: Não vejo qualquer violação ao princípio do juiz natural nesse distanciamento da figura do juiz julgador e do juiz de garantias. No Processo Penal, o juiz natural é o juiz com competência prévia e jurisdição definida. Inclusive, em São Paulo, há mais de 30 anos, foi criado o Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo), o qual opera de forma bastante semelhante à alteração trazida pela Lei nº 13.964/2019, uma vez que todas as medidas cautelares necessárias ao inquérito policial são requeridas ao juiz do Dipo e a instrução processual é realizada por outro juiz, que não teve contato com a fase investigativa.

Qual a sua opinião sobre a inclusão do juiz de garantias no ordenamento jurídico brasileiro?

Renata Mariz: Acredito ser a inclusão do juiz de garantias no ordenamento jurídico brasileiro um avanço. Proporcionará ao juiz que julgará o mérito das ações penais uma maior imparcialidade. As provas colhidas serão utilizadas em condições igualitárias tanto para defesa como para acusação, respeitando o devido processo legal.

Em sua análise à AASP, o criminalista Leonardo Sica classificou o projeto anticrime como totalmente punitivo. Por que o senhor entende que a nova lei segue essa linha?

Leonardo Sica: O projeto tinha uma linha de raciocínio muito clara, que vem lá de trás, da Lei de Crimes Hediondos. E são duas as premissas: aumentar as penas e a repressão penal. Porque esse modelo, supostamente, intimidaria aquele que pretende cometer o crime. O resultado foi uma colcha de retalhos, que traz ideias da reforma do Código de Processo Penal – que está sendo discutida há dez anos –, ideias do grupo coordenado pelo ministro Alexandre de Moraes e jabutis que não sabemos como foram parar lá. Temos normas que ampliam direitos individuais e outras que reduzem. Terminamos com um amontoado de leis sem qualquer indicação de que há uma linha definida para a política criminal.

Quais mudanças destacaria?

Leonardo Sica: Há mudanças na Lei de Improbidade Administrativa que não têm ligação com a lei penal. Outro é o arremedo de legítima defesa para agentes de segurança. Nem sequer a ideia original inicial do ministro Moro se assemelha ao resultado apresentado. É uma cabeça que não serve no corpo. Há ainda a previsão de defensor para servidores das polícias, que será designado pela entidade de classe. É extremamente corporativo e de Direito Administrativo. Não dá para saber o motivo da inclusão desse ponto.

Agora, os delatores só poderão delatar fatos dos quais participaram. Essa mudança foi positiva?

Leonardo Sica: A mudança é boa, porque tínhamos uma possibilidade de delação premiada desregulada. E a regulação foi feita com base nas experiências recentes. Não podemos compactuar com um denuncismo inconsequente. O delator não colabora com a Justiça porque quer, ele o faz buscando benefícios. Por isso é preciso impor limites.

Apesar das mudanças nas delações e em vários pontos da lei penal, não foram feitas alterações nos acordos de leniência. Não faltou essa mudança?

Leonardo Sica: Faltou e vai prejudicar a investigação da corrupção. Um dos grandes problemas da investigação da corrupção no Brasil é o conflito de esferas. E esse conflito atrapalha o acordo. Falta um plano de política criminal justamente para acabar com essas atuações sobrepostas. E o ministro Sergio Moro não enxerga isso porque ele tem uma visão muito limitada da política criminal. Ele foi juiz de uma vara, não tem noção de todo o modelo. Além disso, o ministro apresentou o projeto com poucos meses à frente da pasta. Faltou diálogo.

A Lei de abuso de autoridade será suficiente para coibir os abusos de policiais, promotores e magistrados?   

Paula Hyppolito: Dificilmente. Muitos dos crimes ali previstos já estavam abarcados pela antiga Lei nº 4.898/1965, ou mesmo pelo Código Penal. Além disso, o dolo específico exigido para a configuração de qualquer crime de abuso de autoridade na nova lei é de dificílima comprovação, sendo um elemento que provavelmente a tornará inócua. Também a excludente do crime quando se está diante de divergência de interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas acaba por esvaziar muitos dos próprios tipos penais previstos na Lei nº 13.869/2019.

Quais pontos da Lei de Abuso da Autoridade mais fortalecem a defesa do réu? Quais prejudicam?

Paula Hyppolito: A inserção de uma conduta típica para a criminalização da violação de direito ou prerrogativa de advogados (inviolabilidade do local de trabalho e seus instrumentos, comunicação pessoal e reservada) no próprio Estatuto findará por fortalecer em muito a defesa dos réus – até porque, como não é uma conduta prevista na Lei nº 13.869/2019, é possível afirmar que aqui não será exigido o dolo específico e não haverá a ressalva sobre a divergência de interpretação.

Quais pontos da Lei de Abuso de Autoridade mais expõem a magistratura?

Paula Hyppolito: A criminalização de condutas ínsitas às suas atividades, mas exercidas em desacordo com as previsões legais. Muitos crimes de abuso de autoridade se dirigem exclusivamente à magistratura e, embora a lei tenha afastado o chamado crime de hermenêutica, dizem respeito à correta aplicação da lei.

Após a aprovação da Lei, muitos juízes deixaram de aplicar penas alegando eventuais processos futuros embasados na Lei. Isso não pode ser considerado alarmismo ou exagero? Esse perigo é tão grande assim?

Paula Hyppolito: Sem dúvida é um alarmismo. A lei apenas prevê que os aplicadores do Direito, em especial, atuem dentro da estrita legalidade. Além disso, há expressa menção, em seu art. 1º, §§ 1º e 2º, de que o dolo deve ser específico – “finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou ainda por mero capricho ou satisfação pessoal” – e exclui a conduta típica quando houver “divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas”. Esses dois elementos tornam a lei praticamente ineficaz, na medida em que, na prática, é muito difícil comprovar principalmente o dolo específico.

Dos dispositivos incluídos durante a tramitação, quais elencaria como mais positivo?

Daniela Meggiolaro: O juiz de garantias é um deles. Será um grande avanço se esse novo ator processual vier a ser instituído no Brasil. Outro ponto positivo é a obrigação de fundamentação dos decretos de prisão cautelar. Infelizmente, era muito comum que juízes decretassem a prisão sem fundamentação, de uma forma muito automática. A cadeia de custódia também merece destaque, pois garantirá que a prova seja acolhida da forma mais correta e insuspeita possível. No Brasil, nunca se deu muita importância para o corpo de delito. Por fim, uma boa mudança foi a necessidade de representação nos crimes de estelionato. Quanto menos o Estado interferir nas relações patrimoniais, melhor. Esse novo modelo vai empoderar a vítima e permitir que se concilie com a outra parte.

A tramitação, quais elencaria como mais negativos?

Daniela Meggiolaro: São todos os outros da Lei Anticrime. Essa lei recrudesceu o Direito Penal e o Processual Penal, aumentando o cumprimento de pena e criando dificuldades para o reconhecimento da prescrição, para citar algumas. Esse não é o caminho. Dificultar a situação do réu não vai reduzir a criminalidade ou combater a corrupção. O investimento deve focar em práticas preventivas de crime.

Qual sua avaliação do agente infiltrado, agora formalizado na Lei?

Daniela Meggiolaro: Acredito que seja inconstitucional. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça já declararam isso. Uma pessoa provocada por um agente infiltrado não pratica um crime, é induzida a tal. O agente infiltrado nada mais é do que a formalização do flagrante preparado.

Fonte: Boletim AASP- edição nº 3099

 

Leia também: