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Pontos de vista sobre a Reforma Administrativa

A proposta de futura Reforma Administrativa suscita diversas discussões jurídicas a respeito do novo regime que poderá ser implementado junto à máquina pública.

Em razão dessa possível mudança, a AASP conversou com os especialistas Rafael Valim e Fernando Menezes de Almeida para saber quais serão os principais efeitos da nova legislação.

O professor Fernando Menezes de Almeida entende que, se os processos de avaliação dos funcionários públicos fossem aplicados, a questão de estabilidade não seria discutida, isso porque, em suas palavras, a “regra constitucional atual já prevê a perda do cargo de servidor estável, mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada a ampla defesa”, afirma.

Contudo, por ser considerado um dos temas centrais da reforma apresentada, Rafael Valim acredita que possa ocorrer um embate no Supremo Tribunal Federal; em sua opinião, a estabilidade não seria um privilégio, mas “uma condição necessária para a atuação impessoal do Estado”.

Confira as respostas dos dois especialistas:

A reforma administrativa tornará frágil a proteção contra a pessoalidade?

Rafael Valim: Mesmo diante desse cenário nebuloso, sem um texto definitivo para a Reforma Administrativa, é possível depreender que a perspectiva adotada pelo governo, em meu sentir, é completamente equivocada e parcial. Insiste-se na falsa ideia de que o serviço público seria um lugar de “marajás” e, de maneira paradoxal, fragiliza-se a generalidade dos agentes públicos que exercem suas funções dignamente e se preserva o minoritário, porém escandaloso, grupo de privilegiados. Se levadas a efeito, a eliminação da estabilidade, a redução de vencimentos e outras medidas anunciadas pelo governo resultarão em sérios abalos aos princípios da Administração Pública, notadamente ao princípio da impessoalidade.

Fernando Menezes de Almeida: Se tomarmos como base as informações veiculadas pela imprensa, parece claro que um dos pontos centrais da futura reforma será a flexibilização, ou, em alguns casos, a eliminação, da estabilidade dos servidores públicos. Essa discussão comporta pelo menos duas principais dimensões: do ponto de vista da administração e do ponto de vista do servidor.

Qual seria o ponto de vista da administração?

Fernando Menezes de Almeida: Do ponto de vista da criação de uma estrutura administrativa permanente, eficiente e impessoal, a estabilidade do servidor público é um elemento importante, dando-lhe condições de zelar pela legalidade independentemente de ingerências políticas circunstanciais (eventualmente distorcidas) de governos que se alternam a cada eleição. Claro que a condução política do governo, no regime democrático, deve poder ser alterada conforme o resultado eleitoral. Mas, para isso, há a previsão constitucional de cargos em comissão, de livre provimento e exoneração, para funções de direção, chefia e assessoramento. De resto, a máquina administrativa profissional do Estado deve ser estável, sob pena de perda de eficiência e de impessoalidade.

E o ponto de vista do servidor?

Fernando Menezes de Almeida: Do ponto de vista do servidor, na prática, a estabilidade tem o significado de um aspecto muito vantajoso e atrativo para a carreira. Parece-me que, como regra, a estabilidade justifica-se na maioria dos casos, sempre que a atividade em questão caracterizar uma missão permanente do Estado (independentemente do sentido de vantagem pessoal para o servidor). No entanto, a estabilidade não se pode tornar instrumento de impossibilidade, para que maus servidores, ou servidores que não desempenhem adequadamente as suas funções, sejam mantidos indefinidamente nos cargos.

E como equilibrar esses dois pesos?

Fernando Menezes de Almeida: Para isso, a regra constitucional atual já prevê a perda do cargo de servidor estável “mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa”, além da tradicional hipótese de perda do cargo pela prática de ilícito apurado mediante devido processo legal. Com a aplicação da avaliação periódica de desempenho, que ainda carece de regulamentação, não seria necessária, ao meu ver, essa nova discussão sobre emenda constitucional para alterar o regime de estabilidade.

A reforma administrativa pode caracterizar abuso de poder pela administração pública?

Rafael Valim: A Reforma Administrativa será submetida ao Congresso Nacional, que debaterá as propostas e vai aprimorá-las. Se aprovadas, provavelmente serão objeto de ações diretas de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Por ora, não há que se falar em abuso de poder. Fernando Menezes de Almeida: Não diria que promover a reforma caracterize abuso de poder. A eventual análise de algum ponto da reforma que possa ser ensejador de abuso de poder, por parte de autoridades administrativas, depende do efetivo conhecimento do texto da proposta.

A proposta a ser enviada pelo executivo vai tratar apenas das carreiras deste poder. a câmara pode aproveitar a tramitação e discutir mudanças nas carreiras do legislativo e do judiciário? por quê?

Rafael Valim: Do ponto de vista jurídico, parece-me inviável o aproveitamento da proposta do Executivo para alterar as carreiras do Legislativo e do Judiciário, pois isso configuraria afronta às reservas de iniciativa legislativa previstas na Constituição Federal, o que, naturalmente, torna ainda mais incoerente o discurso do governo, na medida em que, na atualidade, as maiores distorções se concentram nas carreiras do sistema de Justiça.

Quais mudanças considera essenciais para serem apresentadas ao legislativo?

Rafael Valim: Há uma fascinante e complexa teoria sobre reformas administrativas. Não se trata de algo simples e está longe de se resumir ao lugar-comum do “inchaço” da máquina pública ou das delirantes comparações com a iniciativa privada, o que traduz um discurso demagógico risível. Se quisermos, de fato, modernizar a Administração Pública brasileira, devemos deixá-la cada vez mais participativa, transparente e profissional. Atualmente, há ilhas de excelência no Poder Público. Impõe-se universalizar a excelência, por meio de valorização das carreiras, de infraestruturas adequadas e de robustas Escolas de Governo.

Fernando Menezes de Almeida: Os aspectos principais de uma reforma administrativa devem estar ligados à maior clareza na definição de regimes jurídicos a que as diversas pessoas da Administração Pública, nos vários níveis da Federação, estejam sujeitas. Hoje existem regras, muito detalhadas no plano constitucional, que tendem a criar um regime quase unificado para todas as pessoas da Administração direta ou indireta de todos os entes federativos. Eu preferiria um regime que mantivesse na Constituição apenas regras mais basilares, deixando ao legislador ordinário a criação de regimes mais variados conforme a natureza da pessoa estatal em questão, com abertura para melhor acolher as distintas realidades de União, Estados, Distrito Federal e municípios.

Com o fim da aposentadoria compulsória, como fica a aposentadoria do servidor que vier a ser demitido?

Rafael Valim: A aposentadoria compulsória como sanção se me afigura uma excrescência que não deve permanecer na ordem jurídica brasileira. Por outro lado, sempre defendi a inconstitucionalidade da cassação da aposentadoria do inativo que houver praticado, na atividade, falta punível com a demissão, tal como está estabelecido na Lei nº 8.112/1990. Dado o caráter contributivo da aposentadoria, não se pode, em minha opinião, simplesmente confiscar os valores pagos pelo agente público ao longo de sua vida funcional.

O fim da estabilidade pode vir a ter sua constitucionalidade questionada no STF?

Rafael Valim: Eventual fim da estabilidade certamente será questionada no STF. A estabilidade não é um privilégio do agente público, senão que condição necessária para a atuação impessoal do Estado. É instituída, portanto, em benefício de todas e de todos, do mesmo modo que temos as imunidades parlamentares na esfera legislativa e os predicamentos da magistratura na órbita jurisdicional.

Fernando Menezes de Almeida: Não acredito. A estabilidade do servidor público não é uma matéria que esteja tratada entre os limites materiais ao poder de revisão da Constituição, não podendo ser caracterizada como tema de “direitos e garantias individuais”. Eventualmente, aspectos da aplicação de uma regra assim a casos concretos poderão ser questionados, como é natural. Mas não penso o mesmo quanto a essa questão em abstrato.

Um dos principais argumentos do governo para propor a reforma é a questão financeira. esse é realmente o ponto mais importante da reforma?

Rafael Valim: Uma reforma administrativa presidida por critérios unicamente financeiros redundará, inexoravelmente, em retrocessos. Reformar a Administração Pública no Brasil tem significado, nas últimas décadas, debilitá-la, sob o fundamento de que o mercado deveria se ocupar de tudo. Como bem salienta a professora Mariana Mazzucato, o antagonismo entre o setor público e o setor privado não passa de um mito que esconde obviedades, como a constatação de que as inovações que alimentaram a dinâmica do capitalismo, das ferrovias à internet, são resultado de investimento público.

Rafael Valim é advogado e parecerista; doutor e mestre em Direito Administrativo.

Fernando Menezes de Almeida é graduado em 1993 e doutorado concluído em 1999, com livre-docência em 2011.

Fonte: Boletim AASP- ed. 3101.

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