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Perversidade da jurisprudência e extermínio do direito do litigante

Artigo originalmente publicado na Revista Eletrônica Consultor Jurídico – Conjur.

Neste mês de outubro é comemorado, de forma entusiástica, o aniversário de três décadas da Constituição de 1988 — a sétima da nossa história —, elaborada pelo Congresso Constituinte, composto de deputados e senadores eleitos democraticamente em 1986 e empossados em fevereiro de 1987. O trabalho, concluído em um ano e oito meses, permitiu inequívocos progressos em áreas estratégicas da convivência social. As normas previstas no título sob a rubrica Dos Direitos e Garantias Fundamentais, consideradas irrevogáveis, são denominadas cláusulas pétreas (não podem ser alteradas por emendas constitucionais). Entre elas está a maioria das garantias processuais.

Destacada página da história da liberdade, a garantia constitucional do devido processo legal deve ser uma realidade em todo o desenrolar do processo judicial, arbitral ou administrativo, de sorte que ninguém seja privado de seus direitos, a não ser que no procedimento em que este se materializa se constatem todas as formalidades e exigências em lei previstas. A Constituição Federal vigente assegurou, como se sabe, a todos os membros da coletividade um processo que deve se desenrolar publicamente perante uma autoridade competente, com igual tratamento dos sujeitos parciais, para que possam defender os seus direitos em contraditório, com todos os meios inerentes e motivando-se os respectivos provimentos; tudo dentro de um lapso temporal razoável.

Como pressuposto de um processo civil revestido de todas essas prerrogativas, é imprescindível que os titulares de direitos ameaçados ou violados possam submeter as suas respectivas pretensões à apreciação no âmbito de um procedimento no qual lhes sejam asseguradas tais garantias, com absoluta paridade de armas.

E tudo isso, à evidência, sem que haja qualquer surpresa, simplesmente porque a marcha processual não permite emboscadas e tampouco se desenvolve num campo minado.

Não obstante, como, de modo reiterado, tenho procurado realçar, os nossos tribunais, em especial o Superior Tribunal de Justiça, visando diminuir o acervo dos recursos que lhes são dirigidos, valem-se da impropriamente denominada “jurisprudência defensiva”, por mim alcunhada de “jurisprudência perversa” — verdadeira excrescência pretoriana —, que, a um só tempo, dilacera o texto constitucional e fulmina o direito do jurisdicionado!

Daí a inequívoca relevância de concorrido evento, patrocinado pela prestigiosa Associação dos Advogados de São Paulo e apoiado por outros importantes órgãos de classe, que reuniu no dia 20 de setembro muitos advogados para protestarem contra expedientes cerebrinos, manifestamente ilegais, que atentam contra o direito fundamental de acesso à jurisdição e ao devido processo legal.

Como já tive oportunidade de ressaltar em anterior estudo, para combater essa verdadeira vertente inescrupulosa dos tribunais pátrios, inexcedível sob a vigência do revogado Código de Processo Civil, o novo diploma processual contemplou duas regras preciosas, em defesa da sociedade brasileira. Refiro-me aos artigos 1.007 e 1.029, parágrafo 3º, que têm por precípua finalidade contornar o não conhecimento dos recursos por defeitos formais.

Diante da clareza desses dispositivos legais, os advogados, de um modo geral, que exercem a profissão na esfera do contencioso, imaginavam que em boa medida o legislador lograra banir ou, pelo menos, minimizar aquele questionável posicionamento então sedimentado, em especial, nas nossas cortes superiores.

Contudo, a prática tem revelado, de forma contundente e lamentável, que, apesar da vigorosa tendência legislativa expressada no Código de Processo Civil de 2015, acima referida, não se entrevê qualquer movimento — de quem detém a atribuição de interpretar e aplicar as normas jurídicas — vocacionado a solucionar de forma inteligente e institucional o problema da enorme pletora de recursos.

Saliente-se, à guisa de exemplo, que cresceu vertiginosamente o número de decisões monocráticas ou colegiadas que deixam de conhecer do recurso em decorrência da “ausência de impugnação específica dos fundamentos” do ato decisório atacado.

São, em regra, pronunciamentos do seguinte teor:

“É cabível a aplicação, por analogia, da Súmula 182/STJ no agravo de instrumento, previsto no art. 544 do CPC, que não ataca especificamente os fundamentos da decisão que obstou o trâmite do recurso especial.

É inviável o agravo de instrumento que deixa de atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada. Incide, por analogia, o princípio inserto na Súmula 182 do STJ”; ou

“A parte agravante deve infirmar os fundamentos da decisão impugnada, mostrando-se inadmissível o recurso que não se insurge contra todos eles – Súmula 182 do Superior Tribunal de Justiça”.

No recentíssimo julgamento (11/9/2018) do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 1.294.103-RJ, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça assentou que:

“Não há como o agravante restringir o efeito devolutivo horizontal do agravo porque esse efeito já foi previamente delimitado pelos fundamentos da decisão exarada pelo Tribunal de origem. O ordenamento jurídico admite que a parte inconformada recorra, parcialmente, de uma decisão, e, ainda, que o órgão julgador conheça, em parte, do recurso interposto. Não há, entretanto, qualquer previsão que autorize a desistência parcial, tácita ou expressa, do recurso especial após sua interposição. É manifestamente inadmissível o agravo que não impugna, de maneira consistente, todos os fundamentos da decisão agravada”.

Com a devida vênia, como bem assevera Luís Guilherme Aidar Bondioli:

“Esse entendimento não se sustenta. Se o recorrente podia na origem recorrer de apenas parte da decisão, nada o impede de reduzir as dimensões da sua pretensão recursal após sua interposição. No caso, era perfeitamente possível que o recorrente, por ocasião do agravo contra a decisão denegatória, desistisse de lutar pelo reconhecimento da violação da lei no trato da prescrição, inclusive por se convencer do acerto do pronunciamento judicial a seu respeito, e insistisse apenas na viabilidade dos demais temas trazidos no seu recurso especial, todos eles independentes e desvinculados da matéria prescricional. Infelizmente, a única explicação para o acórdão referido acima é a jurisprudência defensiva, que, paradoxalmente, fortaleceu-se após o advento do novo Código de Processo Civil, e não parece mais encontrar limites…”.

Consultando, a propósito, o banco de dados da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, não é difícil constatar que, de 2.720 acórdãos catalogados sob esse fundamento (“ausência de impugnação específica de fundamento”), mais da metade — isto é, 1.428 decisões colegiadas — foi proferida desde a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, ou seja, nestes últimos dois anos e meio (de maio de 2016 a setembro de 2018).

Verifica-se, outrossim — e igualmente de forma lamentável —, que, em passado não tão remoto, o Superior Tribunal de Justiça entendia desnecessária, para se aferir a tempestividade do recurso, a comprovação do feriado de Carnaval ou de Corpus Christi (por exemplo, STJ, 2ª, T., AgInt. no AREsp 1.030.133-SP, 2ª T., j. 9/5/2017). Todavia, por incrível e paradoxal que possa parecer, essa orientação, de todo óbvia, deixou de ser perfilhada, visto que, mais recentemente (17/9/2018), o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 1.270.351-CE, decidiu que:

“Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, o reconhecimento da tempestividade do recurso especial, pela instância local, não vincula o Superior Tribunal de Justiça.

O dia de Corpus Christi não é previsto como feriado nacional pela legislação, em especial a Lei n. 662/1949, alterada pela Lei n. 10.607/2002, e a Lei n. 6.802/1980, as quais determinam os feriados nacionais.

Nos termos do parágrafo 6º do artigo 1.003 do Código de Processo Civil/2015, para fins de aferição de tempestividade, a ocorrência de feriado local deverá ser comprovada, mediante documento idôneo, no ato da interposição do recurso”.

Não é preciso acrescentar mais nada!

Esta nova e deliberada investida da (equivocadamente rotulada) “jurisprudência defensiva”, a rigor, a despeito de não guardar qualquer coerência hermenêutica com as regras processuais em vigor, sobretudo porque, além de acarretar inequívoca “surpresa” às partes, implica verdadeira “sinuca de bico” aos advogados (incluindo-se aí até mesmo os mais experientes). É, assim, o mesmo que dizer que o advogado foi negligente, uma vez que não se deu ao trabalho de enfrentar todos os fundamentos da decisão recorrida ou de comprovar que no dia de Corpus Christi não tem expediente nos tribunais!

Como igualmente já afirmei, entendo, sempre com o devido respeito, que tal posicionamento representa inarredável denegação de jurisdição. Realmente, no que toca ao Superior Tribunal de Justiça — o autodenominado “Tribunal da Cidadania” —, continua ele sufragando o mau combate, no afã de dar baixa a mais um recurso, afastando o julgamento do mérito, em detrimento de sua altíssima e honrosa missão constitucional em prol da unidade da aplicação do direito federal.

Não é, por certo, pela dizimação heterodoxa — e até desesperada — do número de recursos que será atendido o princípio fundamental da duração razoável do processo!

(Artigo originalmente publicado na Revista Eletrônica Consultor Jurídico – Conjur)

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